Antes da suspensão, ministro Nunes Marques votou a favor da tese ruralista

Mais de 5 mil lideranças estiveram em Brasília no início de setembro de 2021 para a II Marcha das Mulheres Indígenas © Rafael Vilela

O julgamento da tese do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF), um dos momentos mais importantes da história para os povos indígenas e para a sociedade brasileira, ganhou novos capítulos na tarde desta quarta (15). 

Na ocasião, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista e com isso o julgamento foi suspenso por tempo indeterminado. Antes dele, o ministro Kássio Nunes Marques proferiu seu voto a favor do marco temporal e contra os direitos dos povos originários.

Antes do pedido de vista, o placar do julgamento estava 1×1. Na semana passada, o relator da matéria, o ministro Edson Fachin, votou contra o marco temporal e a favor dos direitos originários dos indígenas brasileiros. Ontem à tarde, num voto controverso e completamente alinhado aos interesses do agronegócio, Nunes Marques votou a favor da tese.

Próximos passos

Com o pedido de vista, não há previsão de quando o julgamento será retomado no plenário do STF. A sessão desta quarta foi acompanhada presencialmente por 150 indígenas, de 10 povos distintos, que foram para a frente do prédio da Suprema Corte em Brasília (DF) entoar o grito dos indígenas brasileiros: #MarcoTemporalNão! 

O pedido de vista ocorre quando o ministro ainda não tem uma opinião formada sobre a matéria que está sendo apreciada e pede mais tempo para refletir a respeito e formar o seu juízo. Para que volte a ser analisada no plenário do STF, Alexandre de Moraes deve devolver o processo e o ministro presidente da Corte (atualmente, Luiz Fux) deve colocar o assunto em pauta novamente. O regimento interno afirma que o ministro tem 30 dias para devolver o processo, mas esse prazo geralmente é descumprido.

Tese equivocada

O  julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 trata de um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio Ambiente (IMA) de Santa Catarina contra a comunidade Xokleng da Terra Indígena Ibirama-Lã Klãnõ, também habitada por comunidades Guarani e Kaingang. Esse julgamento teve repercussão geral reconhecida pela Corte. Isso significa que a decisão tomada neste caso terá consequências para todos os povos e terras indígenas do Brasil. Ela definirá, portanto, o futuro dos territórios indígenas do país. 

O marco temporal  defende, de maneira equivocada, que os direitos indígenas começaram com a promulgação da Constituição Federal – em 5 de outubro de 1988 – e que, portanto, as demarcações só valeriam para as terras que estivessem sob posse  e ocupação dos povos indígenas nesta data.

Diversos especialistas afirmam, no entanto, que essa tese é inconstitucional, por ir contra o artigo 231 da própria Constituição Federal, que estabelece de maneira muito clara os “direitos originários” dos povos indígenas – ou seja, seus direitos são anteriores à própria criação de nosso País ou do Estado Brasileiro.

Além disso, ela desconsidera as diversas violências às quais os povos indígenas brasileiros têm sido submetidos ao longo da história: assassinatos, chacinas, genocídios, remoções forçadas e surtos de doenças. Não à toa, a tese do marco temporal é apoiada apenas por ruralistas e atores interessados na exploração predatória de territórios indígenas.

Povos ameaçados

Coordenador-jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Eloy Terena contou que, com a suspensão, quem mais sofre são as populações indígenas que residem nos territórios.

“Há diversos povos aguardando a demarcação de suas terras. São famílias que moram nas beiras de estradas, nos fundos de fazendas. Elas estão sendo ameaçadas por invasores, fazendeiros, que estão usufruindo de maneira ilegal dos territórios indígenas. Esta indefinição sobre o assunto apenas dá mais tempo para que esses criminosos continuem fazendo esse uso ilegal, para que eles sigam nessa prática criminosa”, explicou Eloy.

Sobre os votos

O voto do ministro Fachin contra o marco temporal, lido na semana passada, foi considerado uma vitória para o movimento indígena: “Autorizar, à revelia da Constituição, a perda da posse das terras tradicionais por comunidade indígena, significa o progressivo etnocídio de sua cultura, pela dispersão dos índios integrantes daquele grupo, além de lançar essas pessoas em situação de miserabilidade e aculturação, negando-lhes o direito à identidade e à diferença em relação ao modo de vida da sociedade envolvente… Não há segurança jurídica maior que cumprir a Constituição”, disse o ministro alguns dias atrás.

A manifestação de Nunes Marques, porém, foi bastante criticada. A advogada Samara Pataxó, que também integra a assessoria jurídica da Apib, disse que Nunes Marques não trouxe nada de novo: “O voto dele a favor do marco temporal era esperado. Ele trouxe basicamente o que os ruralistas defendem, foi contrário aos interesses indígenas. É algo que não nos surpreende, mas nos abala”, disse Samara.

Direito de ser e existir

Segundo a porta-voz da Campanha Amazônia do Greenpeace, Carolina Marçal, o marco temporal “propõe a legalização da expulsão dos povos indígenas de suas terras”: “Essa tese oficializa toda a violência, ataques e intimidações enfrentados historicamente pelos indígenas, desprezando seu direito originário aos territórios ancestrais”.

Carolina disse também que o marco temporal é, na prática, uma negação do direito de existir desses povos. “Essa tese ignora um passado colonial que se arrasta dissimuladamente até hoje, marcado por uma disputa assimétrica pelos territórios, seus recursos  e que reiteradamente resulta na violação e expulsão dos povos originários de suas terras”, afirmou.

O Greenpeace segue acompanhando o julgamento – quando quer que ele seja retomado – e se coloca ao lado dos povos indígenas brasileiros na busca por seu direito de ser, existir e de manter seus territórios ancestrais.

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