Já percorremos mais da metade da nossa jornada pelo Rio Solimões. Foram mais de 4 toneladas entregues pelo Asas da Emergência para beneficiar povos indígenas do Médio Solimões

Entregamos materiais para a montagem das enfermarias de campanha que beneficiarão dezenas de comunidades indígenas nas cidades de Fonte Boa e Jutaí © Marcos Amend / Greenpeace

26 de agosto de 2020 – quarta-feira, rumo ao Alto Solimões

Agora à noite ultrapassamos 100 horas de navegação e concluímos o quarto dia da expedição do projeto Asas da Emergência pelo Rio Solimões. Nesse período, entregamos um total de 4.252 quilos de materiais hospitalares e de higiene que irão beneficiar povos indígenas nas regiões de Tefé, Uarini, Fonte Boa e Jutaí. 

Após navegar o dia todo, estamos neste momento atracados no porto de Jutaí, onde entregamos os equipamentos para a instalação das enfermarias de campanha para o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) e vamos dormir aqui mesmo essa noite. De manhã, as entregas foram feitas na cidade de Fonte Boa. Pela primeira vez, durante todo o trajeto fomos agraciados com uma chuva fina. Uma dádiva para nos aliviar do intenso calor que tem nos acompanhado nos últimos dois dias – enfim, a Amazônia sendo como ela é, quente e úmida. 

Durante o dia seguimos ziguezagueando entre as margens direita e esquerda para aproveitar as áreas em que o barco pode ter um melhor desempenho – afinal, estamos, literalmente, indo contra a corrente. Seu Souza, nosso prático, me disse que a sonda do barco indicou que passamos por trechos em que o rio estava com apenas dois metros de profundidade. Em outras, esta “fundura” chegou a 54m. 

Tem sido comum, em alguns trechos, a gente não conseguir enxergar a outra margem já que a distância entre os dois lados do rio pode chegar a mais de quatro quilômetros, no verão amazônico, quando chove menos – que é a estação que estamos agora. 

Nessa expedição, testemunhamos como a vida das comunidades ribeirinhas, indígenas e de outras populações tradicionais se faz presente no “beiradão”, como se diz por aqui. Nesses quatro dias vimos inúmeras vilas, com suas escolas, igrejas, roças, animais de criação e estruturas típicas da região, como  jiraus (pequenas extensões de madeira na beira do rio, onde se lava roupa e toma banho, por exemplo), flutuantes (casas, mercados, postos de saúde e outras construções feitas sobre plataformas que se ancoram sobre toras de assacu, madeira leve, porosa e bastante resistente) e, especialmente, palafitas de madeira (casas feitas sobre toras de madeira para que as águas do rio não as atinjam na época da cheia do rio). 

O movimento de pequenas embarcações, como rabetas e voadeiras, é constante. Nelas, leva-se de tudo: gente, compras, animais e um tanto mais de coisa, pra cima e pra baixo no rio. 

Cercados por essa realidade tão diferente das médias e grandes cidades, conturbadas pelo trânsito e um ritmo quase insano, uma pergunta martela a cabeça: “como a Covid-19 chegou a estas comunidades”?

Trágica omissão

Lideranças indígenas, como André Kambeba, coordenador-geral da União dos Povos Indígenas do Médio Solimões e Afluentes (Unipim-SA), afirmam que pelo fato do governo não ter tomado as medidas necessárias para manter os indígenas na aldeia, de modo a evitar a contaminação pela Covid-19, muitos precisaram deixar seus territórios para sacar seus benefícios sociais, como aposentadoria e auxílio emergencial, e comprar alimentos e medicamentos, principalmente. “Iam de canoa pras cidades. Lá, se misturavam e quando saíam, já estavam contaminados”, contou. 

Jones Carvalho, enfermeiro e analista de políticas sociais do Dsei Médio Solimões, disse que os povos mais contaminados são aqueles que vivem próximos das cidades. “Os Katukina, um povo que vive próximo ao Rio Biá, e tem menos contato com a sociedade não indígena, viveu uma situação oposta. Eles, que já saíam muito pouco do território, se refugiaram ainda mais no interior da floresta. E até agora não tivemos nenhum caso registrado de contaminação deles”. 

Infelizmente, no entanto, a realidade evidencia que mesmo em seus territórios ancestrais os indígenas não estão seguros. Nara Baré, coordenadora-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), avalia que vetores da contaminação para o coronavírus ter chegado nos lugares mais distantes da Amazônia são, muitas vezes, invasores, como garimpeiros, grileiros, madeireiros e missionários que até hoje tentam fazer contato com os povos em isolamento voluntário. “E por mais que a Coiab e as organizações indígenas tenham pedido ao governo que, como medida protetiva e preventiva de combate à disseminação da Covid-19 entre os povos indígenas, retirasse, imediatamente, os invasores dentro e no entorno dos territórios, isso não foi feito”, lamenta Nara.  

Como resultado da ausência de medidas eficazes de prevenção, hoje a Articulação dos Povos Indígenas da Amazônia (Apib) registra que 155 povos já foram atingidos pela Covid-19, com um total de 736 óbitos de indígenas em todo o Brasil. 

“É indescritível a dor de quem perde um parente amado para a Covid-19.” © Marcos Amend / Greenpeace

“É muito doloroso ver isso acontecer com a gente. Quando morre um ancião nosso estamos perdendo pessoas que lutaram pelos nossos direitos, que nos ensinam a nossa própria cultura, que fortalecem a gente. Não tenho como descrever esse sentimento, essa dor”, desabafa Nazide Arantes Fernandes, do povo Kokama, presidente da Associação das Mulheres Indígenas do Médio Solimões e Afluentes (Amimsa).  

Surpresas do caminho

Ontem eu mencionei que ao sair da boca do Lago de Tefé e voltar para o caudaloso Solimões tínhamos sido agradavelmente surpreendidos. Eu me referi, especialmente, a dois acontecimentos. O primeiro foi o encontro das águas negras do lago com as águas barrentas do Solimões. Durante quilômetros as águas seguem lado a lado, mas não se misturam. O segundo foi que, ali mesmo, fomos agraciados com a presença de diversos botos vermelhos (também conhecidos como boto rosa) e tucuxi (boto cinza), que pareciam brincar livres entre as duas águas. O inusitado daquele momento, tão simples em alguns aspectos, nos emocionou.

A Amazônia escancara sua beleza e abundância diante de nossos olhos. © Marcos Amend / Greenpeace

A Amazônia é toda superlativa, exagerada em sua beleza e abundância. Uma honra estarmos aqui e testemunharmos esse mar de rio, mar de floresta, mar de biodiversidade, mar de modos de vidas tão sintonizados com o seu ambiente. A Amazônia é, em si, um universo de aprendizados.


Embarque nessa jornada! Acompanhe como foi o terceiro dia da expedição do Asas da Emergência.

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