Enquanto a população tenta se reerguer, o Brasil insiste em repetir erros do passado: aposta em combustíveis fósseis que aprofundam a crise e impedem a construção de um futuro seguro

Um ano após as enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul, uma das maiores tragédias climáticas do país, como estão as pessoas mais impactadas? Que políticas saíram do papel? O que foi feito de fato? E o que ainda precisa ser feito?
O Greenpeace Brasil buscou respostas reunindo dados públicos de orçamento, ouvindo moradores e conversando com organizações que seguem atuando no Estado — especialmente aquelas que participaram da resposta humanitária junto com a gente.
Neste ano em que o Brasil será palco da COP30, a Conferência Climática da ONU, o mundo vai estar de olho em como lidamos com a crise climática por aqui. E tem um ponto que precisa ser reforçado: continuar apostando em combustíveis fósseis — os grandes vilões do clima — é insistir num modelo que já mostrou que não funciona. Se quisermos evitar novas tragédias como a do RS, a hora de mudar é agora.
A grande questão é: nossos governantes vão realmente colocar a vida em primeiro lugar? Vão preparar as ruas, os bairros e as cidades para que mais ninguém sofra ou perca a vida em um próximo evento extremo? Ou vão seguir investindo em soluções ultrapassadas que só pioram a crise?
A gente precisa falar sobre isso. E mais do que isso: precisamos agir.
Elisângela Silva Medeiros, facilitadora do grupo de voluntariado de Porto Alegre (RS), uma das ativistas que atuou durante a frente de ação humanitária em 2024
“Em Canoas, não mudou muita coisa”
Essa é a realidade de Elisângela Silva Medeiros, voluntária do Greenpeace em Porto Alegre, que viveu de perto o caos das enchentes de 2024. Ela e a família moravam em um dos bairros mais atingidos no município de Canoas, a cerca de 14 km da capital gaúcha. “Todos os meus familiares perderam tudo. Minha mãe só conseguiu voltar para uma casa dois meses atrás. Não é a mesma casa porque a estrutura ficou toda comprometida. Tivemos que buscar outro lugar para ela morar”, conta.
Hoje, Elisângela vive em uma área mais segura, mas seus familiares precisaram voltar para o mesmo bairro onde moravam antes — uma região que continua alagando quando chove. O medo e a insegurança seguem presentes. “Eu não posso ver chuva. Fico muito ansiosa e nervosa porque todos os meus familiares ainda estão naquele bairro, onde qualquer chuva já faz a água chegar na canela”, desabafa.
Cada um de seus parentes receberam apenas uma ajuda de R$5 mil até o momento para, pasmem, reconstruir a vida. “Com esse dinheiro, eu comprei geladeira e máquina de lavar. A minha mãe também. Mas fato é que nós perdemos tudo: móveis, televisão, cama, roupa. Na antiga casa da minha mãe, por exemplo, caiu o muro todo que separava da casa do vizinho”
Em um cenário em que ainda há gargalos para a garantia de moradia digna e segura para quem perdeu tudo, as vulnerabilidades se sobrepõem e tornam mais difícil a vida das pessoas mais impactadas.

Moradia digna e segura: o ponto de partida para recomeçar
Um dos grandes desafios na reconstrução é o acesso à moradia segura, a maior luta encampada atualmente pelo MAB, o Movimento dos Atingidos por Barragens, que atua intensamente na região. “As dificuldades são tanto em relação à construção de casas novas em áreas mais altas e seguras como com a reforma de casas que podem ser protegidas em caso de novas enchentes, isso se o sistema de defesa das cidades funcionar”, comenta Alexania Rossato, da coordenação nacional do MAB.
Famílias inteiras seguem vulnerabilizadas ou vivendo de forma provisória à espera de moradia digna e definitiva. De acordo com dados consolidados pelo MAB, ainda existem nove abrigos ativos no Estado, onde vivem 396 pessoas. Além disso, das 20 mil moradias prometidas pelo governo federal, somente 1.500 foram entregues e outras 9.788 estão autorizadas.
Ainda segundo Alexania Rossato, inúmeras famílias sequer foram reconhecidas como atingidas e/ou possuem seus nomes nas listas oficiais dos governos. “E não estando nas listas, não são aptas a acessarem os programas governamentais de recuperação das condições de antes da enchente”, informa.

“Todos em um lugar seguro”
Segundo Juraci dos Santos, coordenadora municipal do MAB, os moradores de Estrela passam por um cenário parecido com o de Canoas.
Participante ativa das ações de ajuda humanitária das quais o Greenpeace também atuou no ano passado, Juraci destaca a importância de resgatar o histórico do Movimento na região, que se juntou aos atingidos para cobrar soluções desde o começo. “Depois da enchente, o MAB ajudou a estruturar uma pauta de reivindicações e levou as demandas até a prefeitura”, conta. Entre elas, estava a necessidade de uma área de 4,5 hectares para reassentar as famílias que ficaram de fora dos projetos oficiais. “Nosso lema é: todos os atingidos morando em um lugar seguro, saudável e feliz”.
Dados levantados pelo MAB de Estrela apontam que, atualmente, 516 famílias estão recebendo o aluguel social, 86 estão em casas provisórias, 78 já assinaram contrato de compra assistida (um acordo específico para a aquisição de imóveis, geralmente dentro de um programa de apoio habitacional, como o “Minha Casa Minha Vida Reconstrução”, criado para auxiliar famílias afetadas por eventos climáticos) e 163 estão em processo na Caixa Econômica Federal.
“As pessoas que não estão em aluguel social ou casas temporárias, estão em casas de parentes ou pagando o seu próprio aluguel, vivendo de acordo com o que a renda familiar permite. Muitas sem a segurança necessária para recomeçar de forma digna”, diz Juraci.

O que ainda falta fazer?
“Nossa cobrança fundamental ao poder público é pela reconstrução das comunidades, bairros e sistemas de proteção, pelo reconhecimento pleno de todas as famílias que são atingidas, pelas reformas das moradias e estruturas comunitárias, por reassentamento adequado, seguro e definitivo e pela regularização para que se tenha as documentações para acessar as políticas de Estado”, diz Alexania.
“Um exemplo de indícios de irregularidades é o custo das casas provisórias, de responsabilidade do governo do estado”, informa Alexania. “Segundo o próprio governo, foram investidos R$83,3 milhões nos chamados módulos (conhecidas como casas de contêineres), o que equivale a R$133 mil por unidade. É um valor muito alto, considerando a estrutura oferecida em 18m². Com esse montante, seria possível construir moradias permanentes em assentamentos estruturados, oferecendo dignidade e a chance real de recomeço ao povo, mas não é o que está acontecendo”, complementa.
Para Bruno Zanette, morador da capital gaúcha e integrante do Eco pelo Clima, movimento em prol da Justiça Socioambiental, um ano após a tragédia, nem Porto Alegre nem o estado estão preparados para um novo evento extremo — mesmo de menor intensidade. Um consenso entre especialistas e população. “Já houve episódios de chuvas mais brandas e recentes que paralisaram a cidade, evidenciando a fragilidade do sistema de drenagem”, alerta.
“A vida de muitas pessoas que perderam tudo continua muito precária. No Vale do Taquari, as famílias que tiveram acesso a moradia em suas cidades ainda residem em cubículos de cimento, que são extremamente quentes e estão localizados a uma grande distância do centro da cidade, onde trabalham, o que dificulta ainda mais a rotina”, complementa.
Quando questionado sobre as principais demandas vigentes, Bruno ressalta que a principal demanda do Movimento é a declaração de emergência climática permanente no estado do Rio Grande do Sul, o que tornaria o RS o primeiro estado brasileiro a assumir esse compromisso.

“O projeto de lei (que pede a declaração de Estado de Emergência permanente) que ajudamos a redigir e propusemos junto com o deputado estadual Matheus Gomes é, para nós, um passo inicial necessário para tratar as raízes da crise climática, que reconhece a conexão direta entre os desastres e a permanência de modelos energéticos poluentes, como o da usina termelétrica de Candiota, a mais ineficiente do país, que opera à base de carvão mineral”. (mais informações sobre a usina mais adiante)
Segundo ele, é fundamental olhar para a realidade atual, compreender as mudanças necessárias e não repetir os erros do passado. “A gente precisa pensar em uma reconstrução que enfrente as vulnerabilidades que já existiam antes do desastre e que foram agravadas por ele”. Bruno destaca que essa reconstrução deve ser orientada por justiça social e climática: “É a oportunidade de fazer diferente, garantindo os direitos de quem foi mais afetado”.


Tragédia anunciada que poderia ser evitada
As tragédias climáticas não acontecem por acaso. Quando vivemos em um cenário de emergência climática, já não é possível argumentar imprevisibilidade diante de eventos extremos. Desde 2015, relatórios e estudos já alertavam para o aumento expressivo das chuvas no Rio Grande do Sul, com projeções de anomalias superiores a 15% na precipitação. O Sexto Relatório do IPCC (2022) reforçou essa tendência, indicando um acréscimo de mais de 10% na média anual de chuvas para a região Sul da América do Sul.
Mesmo diante desses avisos, políticas preventivas foram negligenciadas. O poder público ignorou as projeções e adiou medidas, violando o princípio da precaução previsto na Política Nacional sobre Mudança do Clima. Em vez de fortalecer a proteção ambiental, o Rio Grande do Sul promoveu retrocessos — como a flexibilização do Código Estadual do Meio Ambiente em 2019 — aumentando a vulnerabilidade das populações mais vulnerabilizadas. O resultado da inação ficou evidente: o custo da tragédia de 2024 chegou a R$116,3 bilhões, destinados a ações emergenciais, créditos e isenções fiscais. Desde 1991, o Brasil já acumula R$570,6 bilhões em prejuízos econômicos decorrentes de desastres, segundo o Atlas Digital de Desastres.
“Essa realidade reforça a necessidade de políticas públicas integradas e alinhadas. A reconstrução não pode se limitar a respostas emergenciais. Exige ações de adaptação às mudanças climáticas, mitigação de emissões de gases de efeito estufa e respeito à especificidade dos territórios. Precisamos atuar simultaneamente em reconstrução, prevenção e transição energética”, afirma Rodrigo Jesus, porta-voz da Frente de Justiça Climática do Greenpeace Brasil .
Reconstruir não é voltar ao passado
Embora bilhões de reais estejam sendo investidos na reconstrução do Rio Grande do Sul, o Brasil continua a apostar em políticas que aprofundam a crise climática, em vez de enfrentá-la de forma definitiva.
Enquanto comunidades lutam para se reerguer após um dos maiores desastres climáticos da história do país, escolhas que reforçam a dependência de combustíveis fósseis seguem avançando. É o caso da renovação de licenças para termelétricas a carvão no próprio Rio Grande do Sul, como Candiota III — ainda desativada em abril de 2025, mas alvo de forte pressão para reativação. Também houve tentativas de ampliar subsídios a termelétricas durante a tramitação da Lei das Eólicas Offshore, além do avanço da exploração de petróleo na Margem Equatorial, especialmente na sensível Foz do Amazonas.
Essas decisões caminham na contramão dos compromissos que o Brasil assumiu de reduzir entre 59% e 67% suas emissões de gases de efeito estufa até 2035. Também colocam em risco o papel de liderança climática que o país busca exercer, especialmente com a proximidade da COP30, que será sediada no Brasil.
Reconstruir o Rio Grande do Sul precisa significar mais do que simplesmente refazer o que foi destruído. É a oportunidade de construir um futuro mais seguro e justo, garantindo que a meta de neutralidade climática oriente todos os investimentos — desde infraestrutura e saneamento até saúde, educação e habitação. Isso significa incorporar critérios de resiliência e segurança, reduzir as chamadas zonas de sacrifício climático e respeitar as especificidades de cada território.
Mais do que nunca, é essencial garantir a participação ativa das pessoas mais impactadas em todas as etapas da tomada de decisão, para que a reconstrução não repita as injustiças do passado, mas abra caminho para um futuro melhor.
Caminhos para o futuro
Como anfitrião da COP30, o Brasil ocupa uma posição estratégica para mobilizar os US$1,3 trilhão anuais necessários à agenda climática global. Mas esse protagonismo só será legítimo se o país abandonar contradições internas — como a continuidade da exploração de combustíveis fósseis — e priorizar soluções baseadas na ciência e na escuta das comunidades atingidas.
Não há reconstrução justa sem justiça climática. É hora de investir em modelos sustentáveis de moradia, saneamento, saúde, educação e cultura — com critérios que garantam segurança, resiliência e participação social. O que está em jogo não é apenas a reconstrução do Rio Grande do Sul, mas a capacidade do Brasil de liderar o caminho para um futuro mais justo e seguro para todas e todos.
Veja como foi a atuação do Greenpeace Brasil em 2024 nas ações de ajuda humanitária ao Rio Grande do Sul, junto com parceiros como MAB, Cruz Vermelha Brasileira, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul – ArpinSul, Conselho Indigenista Missionário – CIMI, Grupo de voluntários de Porto Alegre e Grupo de voluntários do Greenpeace Brasil no Litoral Norte do RS.
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