Para entender um pouco sobre a fome que aperta em tempos de crise, mas também sobre insegurança alimentar como um fenômeno estrutural no Brasil, conversamos com uma especialista no assunto: a historiadora social Adriana Salay.

Foto com Adriana Salay, especialista em fome no Brasil

“A fome não é uma fatalidade”. Com essa constatação Adriana Salay indica que o buraco é mais embaixo e que o que temos para hoje é uma combinação indigesta de tristes escolhas que resulta em 19 milhões de pessoas que hoje, no Brasil, vão dormir com fome sem saber o que terão no dia seguinte para comer. Seja estrutural ou pontual – e no Brasil temos, infelizmente, a sobreposição desses dois aspectos – a insegurança alimentar grave, conhecida como fome, é consequência de descasos históricos com a nossa organização social, política e econômica. 

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É a partir de “Geografia da Fome”, estudo referência publicado em 1946 por Josué de Castro, que surge a classificação de fome endêmica e epidêmica, adotada até os dias de hoje, norteando pesquisas, como a de doutorado de Adriana. “A fome endêmica é a cotidiana, de não-crise, causada pela estrutura social, resultado da nossa desigualdade social. A fome epidêmica, a epidemia de fome, em um contexto de crise, coloca numa situação de fome uma parcela muito maior da população. É o que estamos vivendo hoje no Brasil: uma epidemia de fome. Mas a nossa fome não é causada pela pandemia, foi agravada por ela.” 

Para analisar o cenário atual, os dois conceitos se aplicam, conforme nos explica a historiadora: “a gente tem uma fome endêmica no Brasil enorme, que diminuiu no começo do século XXI, mas que mesmo assim se manteve, e voltou a aumentar a partir de 2015. Provavelmente em 2018, em uma época pré-pandemia, já tinha aumentado a fome endêmica. Só que, com a pandemia, a gente entra numa fome epidêmica, que coloca numa situação de vulnerabilidade um grupo muito maior. A partir do momento que a crise volta, os índices de fome voltam junto com ela, porque estão diretamente ligados ao acesso à renda. E a alimentação está diretamente ligada à renda. A fome se intensifica no momento em que a economia começou a estagnar e a entrar em recessão, o número do desemprego começou a aumentar. Claro que depois de 2016, a gente tem um desmonte de políticas públicas que vão intensificar esse processo enormemente, porque vão tirar aquilo que tinha sido construído e que tinha gerado tantos resultados até então”. 

É preciso ponderar que, mesmo com iniciativas do estado voltadas à diminuição das desigualdades, em 2014, “o Brasil saiu do mapa da fome, mas a fome não saiu do Brasil”, problematiza Adriana, explicando que “sair do mapa da fome significa ter menos de 5% da população em situação de fome – e isso ainda é muita gente”. Agora então, não restam dúvidas: com o sistemático enfraquecimento das medidas de transferência de renda e inclusão social como parte de um projeto político, somados ao contexto pandêmico, voltaremos a aparecer nesse triste mapa. Ele ainda só não foi divulgado, mas é questão de tempo.

De qualquer forma, Adriana frisa que “há narrativas em disputa: é preciso observar o que as pessoas entendem como fome. Se o presidente diz que não tem fome no Brasil porque não temos pessoas esqueléticas, ele nos traz uma narrativa, uma definição de fome, e nos dá indícios de que não é preciso tratar disso”. E a pesquisadora se debruça sobre isso, revelando que “quando se falava em fome no século XIX, compreendia-se como algo vinculado a crises. Pensava-se num retirante sertanejo, na 2ª Guerra Mundial, na Guerra Civil Espanhola. Mas a partir do século XX, houve uma mudança de narrativa sobre a fome. Ela passou a ser estudada como um fenômeno social e político, como um problema de acesso não igualitário. Há pessoas que têm acesso, e pessoas que não”. 

Para uma população que convive com uma desigualdade social maior que a da Botsuana, entre as dez piores do mundo, escancarada na primeira fase da pandemia em que quase 30% dos brasileiros precisou do auxílio emergencial, o acesso fácil e de baixo custo a alimentos ultraprocessados aliado à diminuição da oferta e do consumo de produtos agrícolas (num país líder em exportação de commodities) são a mistura tóxica que dá uma nova cara para a fome. Paradoxalmente, ela convive com a obesidade, crescente no Brasil – entre 2003 e 2019 a proporção de obesos na população adulta mais que dobrou, passando de 12,2% a 26,8%

Só durante a pandemia, houve queda de 85% no consumo de alimentos saudáveis, acirrando uma tendência histórica. Em pleno milagre econômico, período assim denominado pela ditadura militar, em que houve grande crescimento do PIB (às custas de muito desmatamento, aumento da concentração de renda e da desigualdade social), mais de 60% dos brasileiros já apresentavam deficiência calórica na alimentação, conforme nos contou Adriana, com base em estudos realizados na época. Dos anos 70 para cá, segundo ela, o consumo de feijão, grande estrela do cardápio nacional, diminuiu nada menos que 50%. E mesmo assim “não somos mais autossuficientes em feijão, porque perdemos espaço. Plantamos soja. Compramos feijão até da China”. 

São escolhas que continuam a confirmar a tese de Josué de Castro de meados do século passado. Nossa fome não é fruto da escassez de recursos naturais nem do excesso populacional. É resultado de um modelo monocultor e de extrema concentração de renda e, por isso mesmo, excludente. “A gente sabe que tem alimento para todo mundo. A gente sabe que a questão do fornecimento do alimento não é a causa da fome. Claro que a gente precisa debater que alimento é esse, se tem veneno, qual a qualidade dele, várias outras questões. Mas se a gente for pensar em acesso à alimentação da parcela da população que está passando fome, ela é causada, na minha opinião, pela desigualdade social, que precisa ser combatida para que a fome deixe de existir. A agroecologia, por exemplo, entra em um novo modelo de mundo, mas que precisa necessariamente passar também por um outro modelo econômico e social, não o que está instalado aí.”

Não é à toa que obviamente a corda arrebenta no lado mais fraco: em lares chefiados por mulheres negras das regiões Norte e Nordeste. “Quando a pessoa de referência é negra, a fome está presente em 10,7% dos lares, enquanto se é branca, 7,5%; e em 11,1% dos lares chefiados por mulheres, a insegurança alimentar grave esteve presente, enquanto se é homem, cai para 7,7%”, conta Adriana, citando pesquisa da Rede Penssan

Enquanto isso, a sociedade civil segue se organizando em movimentos solidários para tapar os buracos da fome que o estado se recusa a ver. Assim é que Adriana Salay, ao lado do marido Rodrigo Oliveira, chef do restaurante Mocotó, com a ajuda de parceiros como a chef Paola Carosella e o restaurante Fasano, criou o Quebrada Alimentada, projeto que distribui 100 marmitas por dia e 370 cestas básicas por mês à população da Vila Medeiros, bairro na Zona Norte de São Paulo. Desde março de 2020 já serviram mais de 80 mil marmitas. Ao lado do Greenpeace e diversas outras instituições, o Quebrada Alimentada se juntou à Campanha Gente é pra Brilhar, Não pra Morrer de Fome. Junto a parceiros, Adriana está preparando um relatório para mapear iniciativas da sociedade civil voltadas à assistência alimentar no contexto da pandemia. Estamos mesmo precisando mesmo de união e de boas notícias!  

Nessa esteira, continuamos a todo vapor com a Campanha Agroecologia Contra a Fome. Até aqui, graças aos nossos apoiadores, já doamos mais de 14 mil quilos de comida de verdade, cultivada por famílias de agricultores, para famílias em situação de vulnerabilidade. Você também pode participar!

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