Carne com gosto de devastação: mais um escândalo que envolve a maior processadora de carne do mundo

A carne que chega ao prato de milhões de brasileiros e também às gôndolas da Europa carrega uma história de devastação da Amazônia, ocupação irregular em terras indígenas e violação de direitos. Uma investigação do Greenpeace Brasil revela que bois criados ilegalmente dentro da Terra Indígena Pequizal do Naruvôtu, no Mato Grosso, foram transferidos para fazenda próxima que, no mesmo período, vendeu gado para unidades da JBS, a maior processadora de carne bovina do mundo.
Esse tipo de operação, conhecido como “lavagem de gado”, é um mecanismo recorrente: animais criados em áreas com algum tipo de irregularidade são transferidos para propriedades “limpas”, que operam de forma regular sob o aspecto socioambiental, e de lá passam a ser comercializados livremente. O resultado? A cadeia da carne continua fomentando atividades ilegais, enquanto empresas lucram com a destruição da Amazônia.
Terra indígena sob ataque

A Terra Indígena Pequizal do Naruvôtu foi homologada por decreto presidencial em 2016, uma década depois de sua identificação e aprovação pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A Constituição Federal proíbe tanto a ocupação de terras indígenas já demarcadas quanto a realização de atividades agropecuárias nelas por não indígenas, mas a homologação no papel não impediu que fazendeiros continuassem explorando economicamente a região, inclusive contestando na justiça a demarcação do território, baseando-se na tese do marco temporal. Em maio de 2025, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a validade da demarcação.
Um desses fazendeiros é Mauro Fernando Schaedler, dono de diversas propriedades que fazem fronteira ou se sobrepõem aos limites da Terra Indígena Pequizal do Naruvôtu. Uma de suas fazendas, a Três Coqueiros II, se tornou símbolo de irregularidades: foi autuada e embargada pelo Ibama por manter atividade agropecuária sem licença dentro da terra indígena. A área embargada soma 592 hectares. Só nessa propriedade, a multa aplicada chegou a R$ 1,5 milhão. No total, as propriedades de Schaedler, que se espalham também por outras regiões da Amazônia, acumulam mais de R$ 3,1 milhões em multas ambientais.
No entanto, nem essas sanções nem a localização irregular da fazenda, dentro de terra indígena, impediram a continuidade da atividade pecuária. Pelo contrário: as investigações mostram que a Três Coqueiros II seguiu produzindo e transferindo gado para outra fazenda, que por sua vez abastecia os frigoríficos da JBS sem seguir protocolos de monitoramento capazes de identificar irregularidades.
A engrenagem da “lavagem de gado” que contamina a cadeia produtiva da JBS

Entre janeiro de 2018 e janeiro de 2025, 1.238 bois saíram da Fazenda Três Coqueiros II e foram enviados para a Fazenda Itapirana, de outros proprietários, localizada a menos de 2 km dali. Essa segunda fazenda não estava dentro da terra indígena e nem possuía embargos ativos, o que a transformou em um “portal” de legalização.
A partir da Itapirana, bois foram comercializados com frigoríficos da JBS. No total, considerando o período entre 2018 e fevereiro de 2025, 2.856 animais foram repassados à companhia, contaminando assim a cadeia produtiva com gado criado ilegalmente em terra indígena. Dos frigoríficos da JBS de Água Boa (MT) e de Barra do Garças (MT), a carne foi então distribuída para consumidores em todo o mundo.
O frigorífico de Barra do Garças (MT) está habilitado para exportação à União Europeia. Isso significa que cortes de carne ligados a práticas ilegais podem ter cruzado o Atlântico e chegado ao mercado europeu. Já a unidade de Água Boa também está autorizada a exportar para uma série de lugares, incluindo Hong Kong.

Em 2009, após campanha do Greenpeace, a JBS aderiu ao Compromisso Público da Pecuária, que trazia a promessa de eliminar o desmatamento da cadeia produtiva de carne na Amazônia, incluindo o monitoramento e bloqueio de fazendas indiretas até 2011. O caso relatado aqui, assim como outros que indicam práticas iguais ou semelhantes, mostram que essas irregularidades não foram descuido, mas que fazem parte de uma estratégia repetida: ocultar rastros e seguir produzindo ilegalmente – sempre contando com a lentidão na implementação dos compromissos assumidos pela JBS, marcada por fragilidade do sistema de monitoramento. A empresa já deveria monitorar integralmente seu abastecimento indireto, onde frequentemente existem irregularidades socioambientais, e reforçar o monitoramento direto, de modo que fosse capaz de identificar indícios dessas práticas.
*As movimentações estão detalhados no relatório técnico completo que pode ser consultado neste link.
Não é exceção, é sistema
Casos como o da TI Pequizal do Naruvôtu são tratados muitas vezes como episódios isolados, mas a realidade é que eles fazem parte de um sistema que permite e alimenta irregularidades socioambientais. Enquanto não houver rastreabilidade completa da cadeia da carne, brechas como a da “lavagem de gado” continuarão sendo exploradas.
Apesar dos compromissos assumidos pela JBS e outros grandes frigoríficos para garantir a rastreabilidade de toda a cadeia de abastecimento da pecuária na Amazônia, esta investigação mostra que a realidade é outra: o desmatamento e as violações dos direitos dos povos indígenas continuam presentes na cadeia da carne e podem chegar, sem barreiras, ao prato de consumidores no Brasil e no mundo.
A JBS segue anunciando metas e prazos para eliminar o desmatamento de sua cadeia, mas ainda está longe de cumprir promessas, mesmo as mais antigas. O relatório do Greenpeace Brasil, “JBS: Cozinhando o Planeta”, já havia exposto como a empresa reafirma compromissos enquanto segue conectada à destruição da floresta. Na prática, a JBS, através do descontrole da sua cadeia produtiva, continua empurrando a Amazônia para cada vez mais perto de seu ponto de não retorno, acelerando o caos climático.
Enquanto isso, áreas incontestavelmente irregulares dentro de territórios protegidos seguem em atividade, violando direitos indígenas, alimentando conflitos e abastecendo frigoríficos. Grandes corporações como a JBS precisam ser reconhecidas pelos danos que provocam e responsabilizadas pelos impactos socioambientais de seus modelos de negócio.
O que precisa acontecer agora
- Combate global ao desmatamento: sob liderança do governo brasileiro, líderes mundiais devem adotar na COP30 um plano concreto para acabar com o desmatamento e a degradação das florestas até 2030. É hora de transformar compromissos em ação.
- Instituições financeiras: bancos e fundos precisam exercer sua devida diligência, revendo financiamentos e investimentos que alimentam agentes destrutivos do setor pecuário.
- Governos: cabe regular com urgência os setores agropecuário e financeiro, alinhando-os ao Acordo de Paris, ao Marco Global da Biodiversidade e aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Isso inclui garantir sistemas alimentares justos e sustentáveis, acabar com o desmatamento e reduzir emissões associadas à pecuária, inclusive o metano.
O lucro não está acima da vida. É hora de transformar compromissos em ação.
O que diz a JBS?
A JBS teve a oportunidade de comentar as conclusões do estudo de caso. Em sua resposta, indicou que todas as compras mencionadas na investigação estavam em conformidade com a política da empresa e com o protocolo setorial. Acrescentou, ainda, que, à luz das informações apresentadas na investigação, a JBS bloqueou preventivamente a Fazenda Itapirana, em Mato Grosso, e solicitou esclarecimentos ao produtor.
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