Pesquisa mostra a abrangência dos impactos da lama nas vidas de comunidades que vivem a 600 km da barragem que se rompeu, da Samarco; e como os prejuízos sociais, culturais e emocionais são ignorados pela mineradora na hora de compensar os atigindos


Chegada da lama em Linhares (ES) – Foto: Leonardo Sá/ Greenpeace

Mesmo separados por 600 quilômetros, os moradores na região da foz do Rio Doce também foram gravemente impactados pelo rompimento da barragem de Fundão (MG). Para além das perdas financeiras, as comunidades tão dependentes do rio vêm sofrendo consequências sociais, afetivas e culturais em função das profundas alterações causadas pela lama da Samarco em seus modos de vida.

Depois de 15 dias percorrendo o leito do Rio Doce desde Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG), o primeiro a ser atingido, a lama da Samarco chegou ao município de Linhares (ES) na manhã do dia 20 de novembro de 2015, para encontrar o mar na tarde do dia seguinte. Para avaliar a extensão dos impactos na foz do Rio Doce, pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo avaliaram a extensão desses impactos, no estudo Rompimento da barragem do Fundão (SAMARCO/VALE/BHP BILLITON) e os efeitos do desastre na foz do Rio Doce, distritos de Regência e Povoação, Linhares (ES).

“A responsável pela tragédia é que está definindo o que é dano e quem deve ser reparado, restringindo esse conceito a quem perdeu sua fonte de renda ou teve a estrutura da sua casa comprometida.Mas quando você conversa com os atingidos, percebe que os danos são mais extensos e profundos. A pesquisa fala da relação fundamental das pessoas com o meio ambiente, sua condição afetiva, de lazer e identidade, e isso precisa ser reconhecido como impacto, não só a dimensão econômica”, diz o sociólogo Hauley Vallim, um dos coordenadores do estudo. Segundo ele, é preciso dar visibilidade para outras necessidades que não são tão tangíveis, mas igualmente essenciais como comida e água potável.

Para alcançar o objetivo do estudo, a investigação contou com análises quantitativas e qualitativas, levando em conta a alteração das atividades rotineiras dos atingidos, como o convívio laboral, familiar e social e os modos de lazer e convívio social. O trabalho de campo quantitativo ocorreu entre os meses de agosto a outubro de 2016. No total, foram aplicados 385 questionários em Regência e Povoação, no município de Linhares (ES). Confira a seguir um panorama dos principais impactos:

Apresentação dos resultados do estudo para a comunidade de Regência – Foto: Divulgação

Prejuízos na atividade pesqueira

Peixes mortos na praia de Regência: a pesca foi a atividade mais prejudicada na região. Foto: Leonardo Sá/ Greenpeace

Para comunidades em que 98% baseavam sua dieta fortemente em peixes e mariscos – e que 66% pescavam o próprio alimento – o impacto da lama para a pesca local é significativo. As tradicionais espécies de guaibira, manjuba, robalo e pescadinha garantem durante o verão uma renda relevante para as famílias de pescadores atravessarem o ano. Pois o verão que se seguiu ao desastre foi igualmente desastroso. Mesmo o pescado capturado antes da chegada da lama não teve saída ou foi vendido a preço muito baixo. Da mesma forma, até hoje os peixes das lagoas não contaminadas em Linhares não recuperaram seu valor de venda.

Para os pescadores do mar, a pesca está interditada até onde a plataforma continental alcança 25 metros de profundidade. Na prática, esta proibição não só inviabiliza o arrasto de camarão – pesca notoriamente agressiva ao ambiente, e profícua nesta área em questão – quanto a daqueles pescadores que, mesmo indo ao mar, o faziam em barcos sem a autonomia necessária para alcançar essa distância da costa.

Material de pesca sem uso começa a degradar por falta de manutenção. Foto: divulgação.

Os pescadores que respeitam a proibição não conseguem mais exercer a profissão e estão vivendo na dependência do auxílio emergencial, um valor muito abaixo dos ganhos da atividade pesqueira. Inclusive, com a atividade parada, seus barcos, botes, remos e redes estão estragando por falta de uso e manutenção. Outros tentam pescar em lagoas e rios próximos, mas enfrentam dificuldades para vender o pescado devido ao temor de contaminação.

Prejuízos na agricultura

Em visita à comunidade ribeirinha de Entre Rios, em 14 de novembro de 2015, os pesquisadores acompanharam o drama de uma família que retirara a bomba de captação da água do rio há quase uma semana e assistia desde então suas hortaliças, bananas, abóboras, e demais plantios secarem, por falta de irrigação. Como a pesquisa sobre Água revelou, a contaminação chegou ao lençol freático e os altos níveis de ferro e manganês prejudicam o desenvolvimento das plantas. Com a redução da produção devido à fragilidade do solo após a chegada da lama, a situação dos ribeirinhos tornou-se ainda mais crítica com as novas dificuldades enfrentadas no processo de comercialização.

Aumento nos gastos domésticos e perda da autonomia financeira (ou dependência da Samarco)

Devido ao aumento no gasto com água potável e sem condição financeira de arcar com ele, alguns moradores se viram na necessidade de sair das suas residências e morar de favor na casa de familiares. “A gente estava ganhando doações de pessoas comuns: famílias e pessoas que se sensibilizaram. Precisamos comprar água mineral para as coisas mais básicas: fazer café, lavar o arroz, cozinhar. Não recebemos nenhuma garrafa de água mineral da empresa Samarco. Estamos indo embora de Regência porque o consumo é alto e não temos como pagar”, relatou a comerciante Adriana a um dos entrevistados.

Diante da situação trágica, os Ministério Público Federal do Espírito Santo (MPF/ES) e Ministério Público do Trabalho (MPT), exigiram que a Samarco providenciasse auxílio emergencial imediato para todos os afetados pelo desastre. Nessa perspectiva, alguns moradores passaram a receber um cartão mensal no valor de uma cesta básica, mais um salário mínimo e 20% por dependente.

A água de péssima qualidade do Rio Doce representa um pesado custo extra para as comunidades locais, que precisam pagar por água mineral para suprir as necessidades básicas, como cozinhar. Foto: divulgação

Ampliação dos conflitos entre vizinhos, amigos e familiares

Se por um lado o auxílio emergencial foi um alívio momentâneo para alguns, o tratamento individualizado por parte da mineradora para com os atingidos foi desajustando as relações familiares e sociais na região. A discriminação de gênero e a invisibilidade das mulheres, crianças e adolescentes; acusações de favorecimento a algumas pessoas, enquanto outras teriam ficado de fora, ou seja, desconfiança quanto à distribuição dos cartões da Samarco; dúvidas quanto à atuação de lideranças no que diz respeito à transferência de informações e à transparência de suas ações foram alguns dos problemas observados e relatados.

Prejuízo no comércio/turismo

Pequenos comerciantes locais tiveram prejuízos com a interdição das praias de Regência e Povoação, que se tornaram impróprias para o banho de mar. A proibição pela Prefeitura foi sinalizada com placas para impedir o contato de pessoas com a água. Grande parte deste turismo está atrelado ao fato de as praias de Regência e Povoação serem famosas por suas ondas, consideradas ideais para a prática do surf e do bodyboard.

Povoação, de mais difícil acesso ao público vindo da capital Vitória, é um destino cobiçado por atletas de bodyboard de todo o Brasil. Regência, do lado sul da foz do Rio Doce, desde a sua descoberta galgou a posição de uma praia secreta e conhecida por poucos para uma das 10 melhores ondas do Brasil. Além do turismo, essa prática esportiva também ficou prejudicada.

Famosa por suas ondas, a praia de Regência atraía surfistas de todo o país, incrementando o turismo e incentivando os moradores locais mais jovens no esporte. Foto: Divulgação

Prejuízo no lazer comunitário

Diante da quase ausência de equipamentos públicos de lazer, o rio e o mar eram os grandes atrativos, sobretudo para as crianças e jovens. Aprender a nadar no rio, onde passavam tardes em churrasco e fazendo pescarias em família ou amigos, tudo isso fazia parte da rotina dos moradores nos distritos estudados e afirmação dos laços familiares.

As crianças estão entre as mais afetadas pela falta de lazer, com a poluição do rio e das praias. Foto: Leonardo Sá/ Greenpeace

Desemprego e endividamento

Em ambos os distritos pesquisados, havia uma profusão de pequenas atividades supridas informalmente nos setores da construção civil, serviço doméstico, jardinagem, alimentação, pequenos reparos, que também foram impactadas pelo desastre, apresentando baixo desempenho.

“Antes da lama chegar eu tocava dois, três serviços como pedreiro, porque as pessoas daqui e de fora estavam investindo na comunidade. Isso caiu 99% e as coisas estão mais difíceis. Eu empregava até seis ou sete pessoas que trabalhavam comigo dentro da vila e hoje tenho um ajudante só. Todos os outros estão parados”, relatou o pedreiro e agricultor Carlos, na entrevista realizada em setembro do ano passado.

Pescadores sem trabalho tentam atualmente obter fontes alternativas de renda. Fonte: Leonardo Sá/ Greenpeace

Abalo emocional e impactos na saúde

De acordo com a Rede Nacional de Médicos Populares, “em alguns casos o sofrimento pode gerar o adoecimento psíquico”. Nessa perspectiva, foram observados e relatados casos que podem configurar tipos específicos, como: quadros depressivos, crises de ansiedade, problemas no sono e dores de cabeça crônicas que merecem a atenção imediata de profissionais da saúde.

Além disso, alguns atingidos relataram que passaram a fazer uso de medicamentos controlados e/ou analgésicos após o desajuste individual e social decorrentes do rompimento da barragem. No entanto, eles não receberam nenhum tipo de apoio social e/ou psicológico e médico para lidar com a tragédia pela empresa mineradora.

Reparação ainda longe de ser obtida

Como o estudo denuncia, o Estado tem se apresentado distante ou ausente para a população atingida na foz do Rio Doce. “A situação crítica vivenciada pelos atingidos tem sido agravada em decorrência do tratamento institucional dedicado à gestão do desastre. Após um ano do rompimento da barragem, poucas ações para reparar o dano causado à vida dos atingidos foram colocadas em prática de forma eficiente pela empresa ou pelos poderes públicos. A desinformação, os boatos e os assédios foram e permanecem constantes na nova rotina da população atingida, e, dessa forma, a perspectiva de futuro continua abalada”, escreveram os pesquisadores.

“O estudo deixa evidente o quanto os atingidos da foz do Rio Doce são muitas vezes desconsiderados pela empresa Samarco e sua Fundação Renova, o que demonstra as limitações da empresa para tratar de maneira justa o desastre causado por ela própria”, afirma Fabiana Alves, da Campanha de Água do Greenpeace.

Mar atingido pela lama da Samarco: para os atingidos, as águas continuam turvas, sem perspectivas de melhoras no curto prazo – Foto: Divulgação

“Fábricas de Marianas”

Enquanto isso, o Congresso brasileiro planeja aprovar o Projeto de Lei 3729/2004, que objetiva flexibilizar o licenciamento ambiental. O interesse não é tornar o processo mais efetivo e responsável, apenas mais rápido.

Caso a lei seja mudada para pior, como querem deputados, senadores e boa parte do governo, todos nós estaremos expostos a maiores riscos, afetando de forma direta populações mais vulneráveis, como as comunidades da Foz do Rio Doce, e alimentando a possibilidade de ocorrência de novos desastres ambientais, como foi em Mariana. Ele deixou um rastro de 21 mortos e arrasou com as esperanças e a vida de centenas de famílias.

Do ponto de vista econômico, o enfraquecimento do licenciamento também poderá trazer efeitos negativos, alimentando conflitos sociais e aumentando o número de contestações legais contra empreendimentos, diminuindo a segurança jurídica para investimentos no país.

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