Conheça iniciativa comunitária de resposta às chuvas no Recife que comprova que política pública se faz com quem mora no território.

As chuvas de maio voltaram a atingir algumas regiões do país e, com elas, mais uma vez recaem perdas imensuráveis e impactos devastadores sobre moradores do Norte e Nordeste do Brasil — especialmente sobre aqueles que já vivem à margem do acesso a políticas públicas essenciais. Relembrar é fundamental para marcar e monitorar o que tem (ou não) sido feito para proteger essas vidas diante de uma realidade de emergência climática já instalada.
Entre os dias 28 e 31 de maio de 2022, há quase três anos, fortes chuvas assolaram Recife (PE), provocando deslizamentos de encostas, tirando a vida de 140 pessoas e deixando centenas de milhares desalojadas — entre muitas outras perdas. Agora, mais uma vez, a população sofre com alagamentos.

No Norte, o Amazonas revive o pesadelo das casas submersas. Em 2021, moradores de Manaus enfrentaram a maior cheia desde o início das medições. Desta vez, as regiões mais atingidas estão ao sul do estado. De acordo com o Painel de Monitoramento Hidrometeorológico da Defesa Civil, 20 municípios estão em situação de emergência por causa da cheia dos rios e mais de 209 mil pessoas estão sendo afetadas diariamente, lidando com dificuldades de locomoção, perdas na produção rural, inundações dentro de casa e casos de doença se multiplicando em decorrência do contato com água contaminada.
O contraste é alarmante: meses após viver a pior seca de sua história, o estado do Amazonas agora lida com o avanço de uma cheia que, segundo o Comitê Permanente de Enfrentamento a Eventos Climáticos e Ambientais, deve se estender por tempo indeterminado.
Enquanto os rios transbordam no Norte, no Nordeste a água avança por ruas, avenidas e invade casas. A situação nas duas regiões do país escancaram mais uma vez que a emergência climática não respeita fronteiras – e atinge com mais força quem já vive em situação de vulnerabilidade.


No Grande Recife e na Zona da Mata Pernambucana, fortes chuvas que caíram no dia 14 de maio e continuaram nos dias seguintes provocaram uma série de transtornos. Duas pessoas morreram por choque elétrico em uma avenida alagada. Houve ainda deslizamentos de encostas, suspensão de serviços públicos e grandes congestionamentos.
“De ontem para hoje, eu dormi três horas”, relata Joice Paixão, no dia 21 de maio, quando as consequências das chuvas ainda impactavam a região. Joice é cientista social, pesquisadora, mediadora de conflitos, educadora social e moradora do bairro Nova Morada, no Recife. Ela também é presidente da Associação GRIS Espaço Solidário e liderou, junto a outros moradores e parceiros, a criação de um plano comunitário de resposta às chuvas.
“Meu filho acordou de madrugada e perguntou: entrou água em casa, mãe?”, conta. Ele tem três anos. Dessa vez, a água não chegou a invadir a casa de Joice. Parou no quintal. Mas dez famílias da Várzea, bairro vizinho ao que ela mora e onde fica a sede do GRIS, precisaram ser realocadas — oito foram para casas de parentes e duas para hospedagem solidária, oferecida por vizinhos da própria comunidade.
Os prejuízos com a falta de adaptação climática são gigantescos para quem vive nos lugares mais impactados e também para os cofres públicos. De acordo com a Confederação Nacional de Municípios (CNM), entre 2013 e 2024, o excesso de chuvas gerou 20,4 mil decretos de emergência no Brasil, o equivalente a 29% do total registrado no período. Os prejuízos econômicos provocados pelos desastres aumentaram de R$ 8,5 bilhões em 2013 para R$ 732 bilhões em 2024, afetando principalmente a infraestrutura pública, a agricultura, a pecuária e o setor habitacional. As chuvas, especificamente, foram responsáveis por mais de R$ 215 bilhões em prejuízos, o equivalente a aproximadamente 29,4% do total.
O conhecimento comunitário como base para a adaptação climática
Diante da ausência de medidas efetivas do poder público para adaptar um território há décadas afetado por eventos extremos, a comunidade não teve alternativa senão agir por conta própria para garantir o direito à vida.
Foi assim que após as chuvas de 2022 nasceu o “Plano comunitário de contingência, adaptação e mitigação dos efeitos das chuvas na Vila Arraes”, uma comunidade do bairro da Várzea. O plano foi elaborado pelo GRIS em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por meio do projeto de extensão TIG-PERIFERIA, e com a participação ativa das mulheres da comunidade — um grupo essencial no território, já que quase 70% das famílias são chefiadas por mulheres, segundo o censo comunitário de 2023.
Esse censo, realizado de porta em porta, foi o ponto de partida para a construção do Plano, junto a um estudo topográfico que identificou as áreas mais vulneráveis às inundações, mapeando riscos à infraestrutura, à saúde e à segurança da população.
Com os dados em mãos, foi estruturado um conjunto de ações emergenciais e preventivas, como a formação de brigadas comunitárias com atuação em logística, saúde (mental e preventiva), comunicação e gestão de crises. A comunidade também participou de treinamentos com a Defesa Civil, abordando protocolos em situações de risco, como enchentes do Rio Capibaribe e os riscos de eletrocussão.

Para fortalecer a comunicação em momentos críticos, foi desenvolvido o plano “Comunicação Viva”, com cartilhas acessíveis, vídeos e áudios educativos como a série “Se Liga Bença!”, voltada também para o público infantil. Outras ações incluem a formação de lideranças em letramento climático e monitoramento de chuvas e marés, oficinas de construção de pluviômetros caseiros, criação de um banco de dados digital das famílias e a reorganização da Cozinha Solidária, que serviu mais de 14 mil refeições em apenas oito dias durante a crise de 2022.
“Eu tenho 40 anos e faz esse mesmo número de anos que vivemos uma perpetuação de violação de direitos aqui onde eu moro. Quarenta anos não são tempo suficiente para elaborar e efetivar soluções permanentes?”, questiona Joice. Para ela, soluções duradouras precisam ser implementadas a partir de políticas públicas que nasçam do território e sejam construídas com quem vive nele: “Não se resolve essa problemática removendo as famílias e destinando indenizações pífias, com valores que fazem com que a pessoa saia de uma área de risco e só consiga ir para outra onde continuará em risco.”
A iniciativa do plano comunitário é um exemplo de como a organização no território precisa ser a base da elaboração das políticas públicas, pois são essas as pessoas que mais sabem sobre o lugar onde vivem e sobre as principais necessidades das pessoas que moram ali. Só assim será possível adaptar as cidades e fortalecer a resiliência local frente às mudanças climáticas.
Segundo Joice, a adaptação das cidades à emergência climática precisa reconhecer a centralidade do conhecimento comunitário: “O que a comunidade já monitora, o poder público pode chegar e fortalecer. É aqui que estão as raízes, o trabalho, a vida das pessoas. E é daqui que precisam partir as soluções”.
Em Alagoas, o cenário também é preocupante: mais de 3 mil pessoas estão fora de casa após as chuvas, que provocaram alagamentos e deslizamentos em diversas regiões. Seis municípios estão em situação de emergência até a publicação deste texto (23.05.25, 13h).
Sem a ajuda de pessoas como você, nosso trabalho não seria possível. O Greenpeace Brasil é uma organização independente - não aceitamos recursos de empresas, governos ou partidos políticos. Por favor, faça uma doação mensal hoje mesmo e nos ajude a ampliar nosso trabalho de pesquisa, monitoramento e denúncia de crimes ambientais. Clique abaixo e faça a diferença!