Névoa de fumaça em Porto Velho em 2024.
Porto Velho encoberta pela fumaça das queimadas em 2024. © Fer Ligabue / Greenpeace

O sol se levanta em Porto Velho com um céu cinza, pesado. Não é névoa nem poluição industrial: é fumaça. Durante meses de queimadas que acontecem anualmente na região, a cidade e os arredores respiram partículas finas liberadas por incêndios que queimam florestas, pastagens e o bem viver. Para os habitantes, a vida diária se transforma em um desafio quase invisível. A garganta arde, a tosse não cessa, os olhos lacrimejam, sintomas de uma crise silenciosa que o Greenpeace Internacional acaba de confirmar com o estudo Céus Tóxicos: Como o agronegócio está sufocando a Amazônia

A uma semana para a COP30, a análise mostra que a poluição do ar das queimadas durante a estação seca faz com que a média anual da região seja pior do que de metrópoles como Pequim, São Paulo ou Santiago. E não é acidente: é resultado direto de um modelo de agronegócio que lucra com a destruição.

O que o estudo revela: poluição acima de tudo

O estudo monitorou a qualidade do ar em duas áreas da Amazônia brasileira: Porto Velho (RO), que está cercada por grandes propriedades agropecuárias, e o município de Lábrea (AM). Além disso, reuniu dados de outras localidades mensurados por satélites e estações terrestres, que foram combinados para comparar com grandes cidades no Brasil e no mundo.

Principais descobertas

  • Durante as queimadas recordes de 2024, as concentrações de partículas finas (PM2.5) em Porto Velho e Lábrea excederam em 20x o limite diário recomendado pela OMS. Já em 2025, mesmo com queimadas muito menos intensas, os limites diários foram excedidos em mais de 6x.
  • A poluição anual de PM2.5 em Porto Velho supera a de megacidades como Pequim, São Paulo e Santiago, embora Porto Velho não tenha indústrias pesadas ou tráfego urbano massivo. Uma “cidade amazônica” que respira como uma megacidade industrial.
  • Cerca de 75% das áreas queimadas no entorno de Porto Velho são utilizadas como pastagens, ou seja, o fogo é usado principalmente para renovar pastagens.
  • Mais da metade da área total queimada em 2024 na Amazônia está localizada em um raio de 360 ​​km ao redor das instalações da JBS, a maior processadora de carne do mundo. Frigoríficos como a JBS não têm políticas que proíbem o uso deliberado do fogo em suas cadeias produtivas, deixando-as expostas ao risco de vínculos indiretos ou diretos com fazendas em áreas de queimadas, inclusive por meio da manutenção de relações comerciais. 

Esses números mostram algo que já desconfiávamos, mas que agora temos material concreto para comprovar: o impacto das queimadas vai muito além da destruição das árvores. O ar está virando um agente ativo de desastre sanitário. Isso afeta a saúde, o clima, a biodiversidade e a economia local. A floresta amazônica, que deveria garantir equilíbrio climático e qualidade do ar para quem vive nela, está virando fonte de poluição para seus próprios habitantes. A fumaça não é apenas um desconforto: é um agente de crise climática e de saúde pública. 

Níveis médios anuais de PM2,5 em Porto Velho e nas principais cidades regionais e globais entre 2019 e 2023, em comparação com as diretrizes da OMS.
Níveis médios anuais de PM2,5 em Porto Velho e nas principais cidades regionais e globais entre 2019 e 2023, em comparação com as diretrizes da OMS. Os dados sobre poluição do ar excluem poeira natural e sal marinho e são do AQLI/EPIC da Universidade de Chicago, com base em dados do Grupo de Análise da Composição Atmosférica (ACAG) da Universidade de Washington em St. Louis (99).

Impactos na saúde

De acordo com o estudo, os níveis de PM2.5 em determinados dias ultrapassam o recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) não em 2x ou 5x, mas mais de 20x. Isso causa efeitos imediatos na saúde respiratória (asma, bronquite, infecções pulmonares), causa irritação e aumenta hospitalizações, especialmente entre crianças e idosos. 

Por trás de cada estatística, há histórias humanas. Pessoas que respiram esse ar pesado e que sentem no corpo os efeitos que o desmatamento e queimadas trazem.

Hilda Barabadá Karitiana, moradora da aldeia Beijarana, na Terra Indígena Karitiana, próxima a Porto Velho, descreve essa realidade:

Hilda fala sobre o cotidiano de uma comunidade sufocada: a fumaça que não respeita limites, o desconforto persistente. Ela vive a ambiguidade de estar perto da floresta mas não estar segura dos impactos do fogo.

Quem lucra e quem perde, e a responsabilidade do agronegócio

Não estamos falando de fogo natural, de tempestades de raios que acendem florestas. Estamos falando de queimadas intencionais, para “limpar” áreas recém desmatadas ou renovar pastagens para produção de carne.

A maior parte das áreas queimadas, segundo o estudo, ocorre em áreas de pastagem ou em áreas desmatadas para pastagens. Por exemplo, quase 75% das áreas queimadas ao redor de Porto Velho eram pastagens, indicando que o fogo é uma ferramenta para a pecuária, e não um ciclo natural. A cadeia do gado tem peso desproporcional nessa conta, e as grandes empresas do agronegócio podem ter sua cadeia produtiva vinculada a áreas de grandes queimadas, sobretudo porque, até o momento, o uso ilegal de fogo não é critério para a vedação de compra de gado de acordo com as políticas das empresas. Além disso, pouco avançaram no monitoramento e bloqueio de fornecedores indiretos que podem estar envolvidos com desmatamento e queimadas ilegais.

O Greenpeace Brasil vem denunciando as atividades nocivas das gigantes do agronegócio. O dossiê “JBS: Cozinhando o Planeta”, com foco no histórico da JBS, expõe como leis, florestas e pessoas são atropeladas para alimentar o mercado global de carne. E este novo relatório alerta que que não é só a perda de floresta que deve ser vista como emergência, mas também a crise de saúde pública provocada por uma poluição que atravessa rios, aldeias e cidades.

O ciclo vicioso entre as queimadas e o futuro climático

O contexto climático amplia a gravidade da situação do ar na Amazônia. O desmatamento reduz a umidade, favorece a seca e cria condições propícias para novos incêndios, que liberam ainda mais gases de efeito estufa, reforçando o aquecimento global. É um ciclo vicioso: desmatamento, queimada, poluição, seca, incêndios. Toda a região e suas comunidades sofrem as consequências, enquanto grandes empresas continuam lucrando com suas cadeias produtivas ligadas à destruição da floresta.

João Gobo, pesquisador da UNIR especializado em biometeorologia humana, explica a dinâmica. Ele revela que essa crise não é episódica, mas parte de uma cadeia cada vez mais perigosa e interligada:

    Políticas públicas, avanços e fragilidades

    Em 2025, alguns progressos importantes mostraram que políticas públicas podem fazer diferença. Um exemplo é a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, com menos de um ano, já apresentou resultados no primeiro semestre de 2025, com queda na área queimada no Brasil de 65% em relação ao ano anterior.

    Houve redução de 75,4% nas áreas queimadas e 61,7% nos focos de calor no primeiro semestre de 2025 em comparação a 2024. Também se registrou que de janeiro a outubro de 2025 foi o menor acumulado de focos de fogo da série histórica para esse período. As chuvas estão dentro de padrões favoráveis, o que evitou a estiagem severa que marcou anos anteriores.

    Mesmo com esses avanços, há sinais de alerta. Algumas áreas desmatadas recentemente, inclusive com embargo, já foram flagradas em processo de queima. O que sugere que a fiscalização, embora reforçada, não é suficiente para resolver um problema estrutural que é a prática de queimadas para desmatamento e limpeza de pasto. São necessárias políticas sólidas que continuem gerando efeitos positivos e de longo prazo, independente da gestão do governo ou de condições climáticas favoráveis.

    A COP30 é o nosso momento decisivo

    Belém do Pará, sede da COP30, será palco não só de discursos, mas da oportunidade de mudar rumos. É a primeira COP realizada em uma floresta tropical, o que eleva o simbolismo, mas ele precisa se traduzir em ações concretas. Para a COP30, o Greenpeace Brasil já apresentou um plano de ação para colocar as florestas no centro das negociações climáticas.

    O Cacique Zé Bajaga Apurinã, da aldeia Idecora, da Terra Indígena Caititu, denuncia a morosidade e cobra efetividade. Para o Cacique, a responsabilidade não é simbólica, precisa ser efetiva, com ações que interrompam o ciclo de destruição.

    José Bajaga Apurinã, Cacique Geral da Terra Indígena Caititu. © Marizilda Cruppe/Greenpeace.

    Sem ações efetivas, a Amazônia continuará a ser explorada, seu ar continuará a ser tóxico, e milhões de pessoas seguirão pagando o preço.

    Entre as demandas urgentes:

    • Zerar o desmatamento com medidas efetivas: designando terras públicas para conservação e uso sustentável, protegendo-as da grilagem e dos incêndios ilegais.
    • Garantir responsabilização real por crimes ambientais: intensificar as investigações e punições contra quem provoca queimadas e desmatamento, acabando com a impunidade que hoje domina a Amazônia.
    • Cumprir integralmente a decisão do STF (ADPF 743) que incluem fortalecer a capacidade de prevenção e combate a incêndios; garantir governança coordenada entre estados e União, com financiamento adequado para políticas de controle do fogo; e desapropriar terras usadas de forma deliberada em queimadas e desmatamento ilegal, quando houver comprovação de culpa dos proprietários.
    • Cortar o acesso ao dinheiro público de quem destrói: impedir que produtores rurais que usam fogo ilegal em suas propriedades recebam crédito rural, financiamento ou vendam seus produtos para grandes empresas do agronegócio.
    • Medir e divulgar o ar que se respira na Amazônia: instalar monitores de qualidade do ar nos municípios afetados pelo fogo, com dados públicos e acessíveis para informar a população e embasar ações de limpeza do ar.

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