Portaria do Ministério da Justiça enfraquece até mesmo os territórios indígenas já existentes frente aos interesses privados do agronegócio, mineração e infraestrutura

Em novembro, os Munduruku protestaram em frente ao Ministério da Justiça, em Brasília, pedindo por demarcação Foto: Otávio Almeida/Greenpeace

Reconhecida na Constituição de 1988 como um dever do Estado para com os povos indígenas do Brasil, a demarcação das terras indígenas acabou por se transformar num drama quase sem fim para a maioria das populações indígenas do país, sobretudo daquelas que têm, no seu caminho, os interesses privados do agronegócio, do setor mineral e de energia do país.

Em meio a diversas tentativas históricas de se dificultar a demarcação desses territórios, como a PEC 215 e a Portaria 303 da AGU, o Ministério da Justiça publicou nesta semana mais uma pérola burocrática com o claro objetivo de dificultar o processo de demarcação e superar qualquer impedimento à ampliação da política de produção de commodities para o mercado global.

Publicada inicialmente no dia 19 de janeiro como Portaria 68 e reeditada no dia seguinte como Portaria 80, a norma foi, e continua sendo, fortemente criticada por organizações de representação dos povos indígenas, especialistas e até pelo Ministério Público Federal, que a classificou de inconstitucional e ilegal.

Em sua primeira versão, a Portaria chegou ao absurdo de constituir uma interpretação inversa ao que diz a própria Constituição, produzindo uma falsa compreensão de que os povos indígenas podem e devem receber reparação por suas terras, territórios e recursos subtraídos por meio de grilagem ou mesmo por ação do Estado.

Trata-se de um flagrante desacordo com a disposição constitucional, que torna nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas.

Para além disso, ficou patente a iniciativa do Ministério da Justiça de tentar incorporar ao processo de demarcação a tese elaborada pela bancada ruralista –e seguida por outros segmentos do setor de infraestrutura, a exemplo do setor elétrico –, de que os povos indígenas só teriam direito às terras  que ocupavam em 5 de outubro de 1988.

A FUNAI não reconhece essa tese, que não está na Constituição Federal. É preciso considerar, sobretudo, o fato de que muitos povos foram expulsos de seus territórios tradicionais por meio da ação do próprio Estado ou de forças privadas, sem que pudesse exercer seu próprio direito de defesa.

Enfraquecimento da Funai

Diante da enxurrada de críticas nesta sexta-feira (20), o Ministério da Justiça recuou na maioria dos pontos criticados, mas manteve na reedição a criação de um Grupo Técnico Especializado. Este Grupo contraria o disposto no Decreto Presidencial 1.775/1996. Há 20 anos, em concordância com a Constituição Federal, ele determinou à FUNAI a atribuição técnica de identificar e delimitar as terras indígenas do país.

O mesmo decreto determina que cabe ao Ministro da Justiça a função de analisar se o processo de demarcação cumpriu as orientações previstas no Artigo 231 da Constituição, declarando ou não a continuidade do processo.

Em tese, sob o pretexto de auxiliar o Ministro da Justiça, a criação do Grupo Técnico Especializado abre espaço para que sejam feitas análises e pareceres por consultores jurídicos que não atuam na carreira de indigenista especializado da FUNAI, o que na prática fere a Constituição e o Decreto Presidencial 1.775/96. Isso possibilita que processos de demarcação sejam revistos ao sabor dos interesses privados.

Segundo Danicley de Aguiar, da Campanha de Amazônia do Greenpeace, contrariamente ao que diz o presidente Michel Temer, a iniciativa do Ministério da Justiça não vai acelerar o processo de identificação e demarcação de terras indígenas, muito menos trará segurança jurídica, uma vez que todas as preocupações que fundamentam o ato já estão previstas na Constituição Federal e especialmente no Decreto Presidencial.

“O mais provável será o acirramento dos conflitos. Dada a possibilidade das terras indígenas ficar sob domínio privado ou do licenciamento de projetos de infraestrutura atravessar o caminho dos processos de demarcação, o que veremos é o recrudescimento da histórica violência contra os povos indígenas”, afirma Danicley.

Um caso clássico é o processo de demarcação da terra indígena Sawré Muybu, do povo Munduruku, que tem em seu caminho os planos de construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. Embora a FUNAI tenha publicado seu Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação, e reiterado a vedação constitucional que impede a remoção das quatro aldeias para a construção da hidrelétrica, o setor elétrico insiste em não reconhecer os pareceres e análises da FUNAI.

Na prática, a criação do Grupo Técnico Especializado pode atuar no sentido de rever o processo de demarcação, superando a vedação constitucional imposta pelo reconhecimento e delimitação de Sawré Muybu.

Isso abriria caminho para a reapresentação de um novo licenciamento ambiental da usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, o que ameaça a sobrevivência física e cultural do povo Munduruku, por meio do alagamento de milhares de hectares de floresta e alterações profundas na fauna aquática do rio Tapajós.

Munduruku à beira do Rio Tapajós: demarcação é a garantia de preservação ambiental e sobrevivência dos povos indígenas Foto: Markus Mauthe / Greenpeace

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