Investigação exclusiva revela que frigorífico comprou, entre 2018 e 2022, quase 9 mil cabeças de gado com origem em fazendas de uma quadrilha de desmatadores de Rondônia
*Com textos de Naira Hofmeister, André Campos, Isabel Harari, da Repórter Brasil, e Lucy Jordan, da Unearthed
Há mais de dez anos, os gigantes da carne do Brasil prometem ao mundo mais controle sobre o desmatamento em suas cadeias de produção, e em todo esse tempo essas mesmas empresas vêm ignorando o problema dos fornecedores indiretos, aquelas fazendas por onde o boi passa antes de ser vendido para o abate.
Em uma investigação inédita feita pela Repórter Brasil em parceria com o Greenpeace Brasil e o portal Unearthed, da Inglaterra, identificamos que um dos maiores frigoríficos do planeta, a brasileira JBS, detentora da marca Friboi, abateu 8.785 cabeças de gado de três fazendas com desmatamento em Rondônia. A JBS confirmou os dados obtidos e, segundo a companhia, essas compras foram registradas em seu sistema como tendo origem em uma outra fazenda, do mesmo grupo, que estava liberada pelos critérios socioambientais.
As compras irregulares ocorreram durante pelo menos quatro anos, entre 2018 e 2022, sem que os sistemas de monitoramento e checagem socioambiental barrassem os negócios.Todas as fazendas pertencem à mais famosa quadrilha de infratores ambientais do Estado, cujo líder, Chaules Volban Pozzebon, está preso por extração ilegal de madeira e é considerado o maior desmatador do país, além de ter sido condenado por usar mão de obra escrava em uma de suas propriedades.
A Minerva, outra gigante do setor de carnes no Brasil, também adquiriu 672 animais de uma das fazendas com desmatamento ilegal dos criminosos. Os repasses ocorreram ao longo do ano de 2021, embora o frigorífico tenha confirmado que a fazenda estava bloqueada em seu sistema desde 2018, “por apresentar irregularidades em 2014, 2016, 2018, 2019 e 2020 e, também, por apresentar sobreposição de polígono de embargo do Ibama”.
Frigoríficos financiam o desmatamento
Chaules Volban Pozzebon é um conhecido criminoso ambiental e foi condenado a 99 anos de prisão por extração e beneficiamento de madeira retirada ilegalmente de dentro de terras protegidas. A cadeia, entretanto, não o impediu de seguir no comando de atividades ilegais, como grilagem e desmatamento, como mostram investigações.
Segundo documentos da Polícia Federal aos quais a reportagem da Repórter Brasil teve acesso, o grupo do desmatador negociou R$ 47 milhões com a JBS, apenas entre 2015 e 2019 – em três anos neste período, o frigorífico foi a principal fonte de receitas do bando. A Minerva também aparece como financiadora da quadrilha em 2018, quando foi sua 11ª maior fonte de receitas, com R$1,3 milhões repassados – o que revela a existência de relações anteriores às compras feitas em 2021.
A empresa da família de Chaules Pozzebon leva o nome da propriedade rural na qual a maioria dos animais ilegais repassados para a JBS pastavam nos meses antes do abate: a Fazenda Rio Preto, também identificada nas Guias de Trânsito Animal como LH B-90, em Cujubim, Rondônia.
A investigação rastreou 3.880 cabeças de gado repassadas pela Agropecuária Rio Preto, com origem nesta propriedade, diretamente para o abate nas unidades da JBS de Porto Velho, São Miguel do Guaporé e Vilhena – todas no estado de Rondônia.
Há 15 anos o Ibama luta para que Pozzebon faça o reflorestamento dos 2,6 mil hectares da Amazônia que foram destruídos na Fazenda Rio Preto. Em 2008, a Justiça deu razão ao órgão ambiental, mas o criminoso nunca cumpriu a determinação. Pelo contrário, em sobrevoo realizado em junho de 2022, o Greenpeace flagrou animais pastando na área embargada pelo Ibama. As multas ambientais de Chaules, que segue preso, já chegam a R$ 24,6 milhões.
Mercado internacional financia os frigoríficos
Com tantas falhas na rastreabilidade de sua cadeia de produção, é possível que os produtos da JBS e da Minerva feitos com a carne proveniente de áreas desmatadas tenham ido parar nas prateleiras de consumidores internacionais.
De 2018 a 2022, os EUA importaram 12.389 toneladas de carne bovina da JBS dos três municípios onde estão as plantas envolvidas com a ilegalidade (em Porto Velho, Vilhena e São Miguel do Guaporé). Somente Hong Kong e Egito, país que sedia esta semana a Conferência do Clima das Nações Unidas, a COP 27, compraram mais carne bovina JBS destas unidades durante este período.
Além disso, investidores de todo o mundo têm sustentado essas operações, mesmo que a atividade dos frigoríficos seja uma das mais expostas ao desmatamento – e que isto esteja em desacordo com as suas políticas de investimento. No Brasil 90% das árvores que tombam na Amazônia cedem lugar ao pasto, segundo o Imazon.
Em 1º de novembro, a JBS anunciou ter recebido financiamento de 1,5 bilhões de dólares provenientes do Bank of Montreal. Atualmente, instituições financeiras norte-americanas detém US$ 246 milhões em ações e títulos da JBS, levando os EUA ao posto de segundo maior investidor no frigorífico depois do Brasil. As gestoras de ativos Vanguard, Fidelity Investments e BlackRock detinham os maiores volumes de investimento.
Já bancos e outras instituições financeiras da União Europeia detêm 53 milhões de dólares na JBS. A União Europeia está avançando para aprovar uma nova lei anti-desmatamento que, pela primeira vez, proibiria que produtos ligados à destruição de florestas e violações dos direitos humanos fossem colocados à venda no mercado europeu. A legislação que vem sendo votada pelo Parlamento Europeu abrange instituições financeiras europeias, cujas carteiras de investimento precisarão ser examinadas para evitar vínculos com projetos e empresas relacionados ao desmatamento.
Minerva e JBS já firmaram acordos, mas falharam
Principal motor de desmatamento da Amazônia, a cadeia produtiva da pecuária teve uma grande oportunidade de melhorar suas práticas há mais de dez anos, mas até hoje segue patinando no rastreio de fornecedores indiretos e na transparência destes processos.
Em 2009,os três maiores frigoríficos que atuam na Amazônia – JBS, Marfrig e Minerva – assinaram junto ao Ministério Público Federal um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e aderiram aos “Critérios Mínimos para operações com gado e produtos bovinos em escala industrial no bioma Amazônia”. Na prática, eles se comprometeram a desenvolver sistemas de monitoramento para excluir de suas listas de fornecedores as fazendas que continuavam desmatando, que usavam mão de obra em situação análoga à escrava ou que tivessem invadindo áreas protegidas.
Mas ainda hoje, não importa onde você esteja, nenhum supermercado no Brasil pode garantir que 100% de sua carne bovina é produzida sem crimes sociais e ambientais. Infelizmente, uma pecuária livre de desmatamento ainda é um sonho distante.
Resguardados pela falta de apetite dos governos locais e federal de darem mais transparência ao controle de origem de animais, os frigoríficos ainda se esquivam de controlar seus fornecedores indiretos, como exigem os compromissos firmados. O boi que nasceu em uma fazenda e transita por diversas propriedades até o dia de seu abate deixa um rastro de destruição no seu encalço que não é detectado pelo rastreio.
Com tantas lacunas e sem um controle de ponta a ponta da cadeia, a execução dos acordos nunca se concretizou plenamente, limitando muito seus efeitos positivos e abrindo brechas para o greenwashing das empresas, que se dizem líderes da produção sem desmatamento.
“Enquanto as empresas que comercializam um produto responsável por 90% do desmatamento da Amazônia continuarem apresentando planos e sistemas vagos e falhos para evitar o desmatamento na sua cadeia de suprimento, a Amazônia vai continuar em risco” afirma Nilo D’Ávila, da campanha de Amazônia do Greenpeace Brasil. Para D’Ávila, os 8 mil bois desta investigação, infelizmente, são apenas a ponta do iceberg . “Pelo bem da Amazônia os frigoríficos devem criar de imediato restrições e bloqueios para fornecedores de áreas com floresta, incluir análise de grilagem nas compras e rever todo o seu processo de monitoramento. É urgente uma moratória do desmatamento, como apontado pelo O Painel Científico para a Amazônia”, reforça Nilo.
Em 2023 o Brasil iniciará um novo capítulo de sua história, onde deve assumir o protagonismo no debate socioambiental no mundo. Diante da emergência climática que vivemos, e da urgência em frear a perda acelerada de biodiversidade, é preciso que este protagonismo não seja apenas do governo, ou apenas no debate, mas que esteja refletido também em ações de todos os envolvidos.
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