
E por que ainda insistimos em chamar de transição o que é só acúmulo de fontes
Nos últimos anos, o debate sobre transição energética ganhou força no Brasil. Mas será que estamos indo na direção certa? De um lado, há conquistas importantes. Em 2023, quase metade da energia usada no país veio de fontes renováveis, como hidrelétricas (energia da água), parques eólicos (energia do vento) e painéis solares (energia do sol). Segundo dados oficiais, essas fontes limpas representaram 49,1% da Oferta Interna de Energia (OIE) — um crescimento em relação aos 45% registrados em 2021.
A energia solar, em especial, tem crescido muito: sua capacidade de produção alcançou 37 gigawatts em 2023, isso equivale a milhões de casas abastecidas. Mas só isso não basta.
Apesar do crescimento das fontes renováveis, a produção e o consumo de combustíveis fósseis também continuam aumentando. Isso revela um problema central: o Brasil não está substituindo uma matriz energética poluente por uma limpa — está apenas somando fontes.
E transição não é soma. É mudança.
“Para além da necessária substituição gradual dos combustíveis fósseis por fontes energéticas renováveis, a transição promove uma profunda reflexão sobre o uso eficiente da energia produzida.”
— Danicley de Aguiar, porta-voz do Greenpeace Brasil.
O que temos visto, na prática, é a tentativa de modernizar o velho modelo energético com uma nova embalagem. O discurso da transição tem sido usado, inclusive, para legitimar o avanço da indústria fóssil em áreas extremamente sensíveis, como a Foz do Amazonas. Em vez de promover uma mudança de rota, o país segue prolongando sua dependência do petróleo e do gás natural.
Para ser justa, a transição precisa ser popular
Zerar as emissões do setor energético até 2050 é uma meta que exige ação agora.
Isso significa:
- Planejar com responsabilidade;
- Garantir recursos e;
- Incluir diferentes vozes na construção desse caminho.
Sem um plano concreto que nos leve para longe dos fósseis, o Brasil corre o risco de ficar para trás no esforço global contra a crise climática.
O modelo energético atual já exclui populações — e há o risco de que a transição siga o mesmo caminho. Por isso, o debate precisa sair dos gabinetes técnicos e chegar às comunidades, periferias e territórios. O Brasil só fará uma transição energética justa se ela for construída com e para o povo.
Energia limpa é aquela que respeita a vida
Não basta reduzir emissões se, ao mesmo tempo, expandimos projetos que causam desmatamento, expulsam comunidades e ameaçam biomas inteiros. Energia só é verdadeiramente limpa quando é produzida em harmonia com o clima, as pessoas e os territórios.
No Nordeste brasileiro, a expansão de grandes empreendimentos eólicos deixou um alerta: projetos de energia renovável também podem gerar injustiças sociais e ambientais se não forem bem planejados e regulados. O mesmo risco paira sobre a Amazônia. Os impactos da instalação de infraestruturas energéticas precisam ser monitorados com rigor, e os benefícios, distribuídos de forma equitativa.
Não existe transição sem abandono dos fósseis
A tentativa de liberar o Bloco 59 para exploração de petróleo revela uma contradição central: não há transição energética verdadeira se ela continuar abrindo caminho para mais petróleo.
Defender a Foz do Amazonas é defender o compromisso climático que o Brasil assinou — e que precisa cumprir com coerência. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, declarou que “o IBAMA é o responsável por atrasar a transição energética” por não liberar licenças para exploração na Foz. Mas a realidade é outra: a maior barreira é a ausência de um plano concreto para conduzir o Brasil rumo a uma matriz limpa.
Enquanto pressiona por licenças de petróleo, o ministro deixa de lado o Plano Nacional de Transição Energética (PLANTE) — lançado em 2023, mas ainda sem avanços relevantes. Estruturas como o Fórum Nacional de Transição Energética (FONTE), criadas para elaborar políticas públicas inclusivas, seguem inoperantes.
“Embora os combustíveis fósseis (carvão e petróleo) tenham contribuído para o desenvolvimento tecnológico e produtivo da humanidade nos séculos passados, a herança deixada por esse período ainda nos custa caro: o aquecimento global e inúmeros impactos socioambientais. Nosso futuro dependerá da nossa capacidade de fortalecer e transitar para um modelo energético mais justo e limpo.”
Pablo Nava, Especialista em Energia.
Promete-se o futuro, mas se insiste no passado
Além disso, o discurso de que o petróleo será usado para financiar a transição não se sustenta. Estudos mostram que os subsídios governamentais à indústria fóssil são quase cinco vezes maiores que os destinados às fontes renováveis, revelando a incoerência entre discurso e prática.
Embora o governo afirme caminhar para uma transição energética, parte das ações e investimentos mostram o contrário. Um exemplo é o avanço das tecnologias de captura e armazenamento de carbono (CCS) — uma técnica que retira o CO₂ emitido por combustíveis fósseis e o armazena no subsolo. Embora promova a redução parcial das emissões, essa tecnologia permite que o petróleo, o carvão e o gás natural sigam sendo explorados, com a promessa de que seriam “menos poluentes”. Na prática, isso prolonga a vida útil de um modelo energético ultrapassado, adiando as mudanças estruturais necessárias.
Segundo dados da CCS Brasil, o potencial nacional para captura de carbono pode alcançar até 32% das emissões do setor energético, o equivalente a cerca de 130 milhões de toneladas de CO₂ por ano. Além de serem projetos com altíssimos custos, desviam o fluxo de investimentos dos projetos que realmente precisam ser financiados.
Entenda o contexto da exploração na Foz do Amazonas
A liberação de novos blocos para exploração de petróleo na região da Foz do Amazonas vai na contramão de tudo que se espera de uma transição energética justa. Os impactos ambientais e sociais são profundos:
- Manguezais e ecossistemas marinhos únicos estão sob ameaça de colapso;
- O protocolo de consulta dos Povos Indígenas do Oiapoque não foi respeitado;
- Comunidades ribeirinhas, indígenas e tradicionais não foram ouvidas sobre os riscos da atividade.
Explorar petróleo ali é uma violação ambiental, cultural e climática.
Mas afinal, o que são blocos exploratórios?
Blocos exploratórios são áreas delimitadas pelo governo federal com o objetivo de avaliar seu potencial de reservas e produção de petróleo e gás natural. No Brasil, os fósseis pertencem à União, que atua por meio do:
- Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) — que define as diretrizes do setor;
- Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) — que realiza os estudos e os leilões desses blocos.
Esses blocos podem abrir novas fronteiras de produção, inclusive em áreas ainda pouco estudadas ou com alta sensibilidade ecológica — como a Foz do Amazonas.
O que podemos exigir?
Para que a transição energética brasileira seja real, é preciso garantir:
✔ Um plano concreto para eliminar progressivamente os fósseis
✔ Participação popular na tomada de decisões
✔ Respeito aos direitos das comunidades locais
✔ Projetos de energia limpa que sejam sustentáveis também do ponto de vista social
O presidente Lula precisa deixar de ouvir as vozes do passado e assumir o compromisso com um futuro energético justo, inclusivo e popular — começando pela Petrobras, que até hoje não apresentou um plano de transição capaz de proteger os interesses do país e dos seus próprios trabalhadores.
Sem isso, continuaremos apenas repetindo as falhas do passado com uma nova embalagem.
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