Por unanimidade, Supremo Tribunal Federal reafirma lei que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos e que teve origem na luta de um ativista cearense

Do sertão ao Supremo: vitória da saúde pública e do meio ambiente! Os ruralistas tentaram, mas não conseguiram acabar com a lei estadual Zé Maria do Tomé (16.829/19), que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará. O Supremo Tribunal Federal (STF) votou unanimemente pela permanência e constitucionalidade da norma, que leva o nome de um camponês assassinado justamente por combater o uso de veneno.

Desde 2019, o Ceará é o único estado brasileiro que conseguiu banir a pulverização aérea de agrotóxicos. Porém, no mesmo ano, essa conquista cearense foi questionada pela Confederação de Agricultura do Brasil (CNA) e, na sexta-feira (26/05), finalmente o STF bateu o martelo, decidindo a favor do bem-estar social com 10 votos a 0. Agora, a decisão pode ser replicada em mais 10 estados.

“O Ceará conseguiu uma conquista imensa para sua população e é um exemplo para todo o Brasil”, explica Marina Lacorte, porta-voz de Agricultura do Greenpeace Brasil. “A pulverização aérea é, sem dúvida, uma enorme potencializadora da disseminação irresponsável de substâncias tóxicas sobre as pessoas e as riquezas naturais. Ao proibir essa prática damos um passo histórico na garantia da saúde pública, soberania alimentar e conservação ambiental“.

Banir as chuvas de veneno beneficiam, inclusive, a própria agricultura. Em 2019, assim que proibiu a pulverização aérea de agrotóxicos, o Ceará teve um aumento nas produções, nas exportações e na renda gerada pelas plantações de banana, principalmente na Chapada do Apodi (CE) — antes da proibição, os cultivos de banana eram o que mais usavam aviões para despejar substâncias tóxicas.

Nota em defesa da Lei Zé Maria do Tomé encaminhada ao STF

Lei Zé Maria proíbe chuva de veneno

Foi a morte do agricultor Zé Maria do Tomé que deu vida à primeira legislação brasileira contra a pulverização aérea de agrotóxicos. Morador do município Limoeiro do Norte, na Chapada do Apodi, em meio ao semiárido e a Caatinga cearense, Zé Maria foi um dos primeiros em sua região a perceber e denunciar os prejuízos causados pelas substâncias tóxicas, promovendo debates e soluções com foco na saúde. 

Mas, no país em que mais mata ativistas ambientais, infelizmente o destino de Zé Maria não foi diferente: ele foi assassinado com mais de 20 tiros perto de sua casa, na comunidade do Tomé, e em plena luz do dia em 21 de abril de 2010. Em maio de 2023, o Greenpeace visitou a região.

Memorial em homenagem à Zé Maria do Tomé, ativista e camponês assassinado em 21 de abril de 2010, na Chapada do Apodi (CE), por combater e denunciar os impactos dos agrotóxicos.
© Nilmar Lage / Greenpeace

“Quando dão 25 tiros, estão dando um recado. Então percebemos que ou a gente se unificava, ou teria mais mortes, explica Reginaldo Ferreira, membro do Movimento 21 (M21), uma articulação que foi criada por organizações da sociedade civil e da acadêmica após o assassinato de Zé Maria para dar seguimento à sua batalha contra os agrotóxicos. 

“Ele sabia que corria riscos, mas dizia que se continuassem com a luta dele, ele seria feliz”, conclui Reginaldo.

Violências e vítimas dos agrotóxicos

Berço da lei contra a pulverização aérea, a Chapada do Apodi é conhecida por ser um polo do agronegócio com uso abusivo de agrotóxicos – abrigando centenas de trabalhadores rurais e exportando frutas para o mundo inteiro – e pelos altos índices de pistolagem e conflitos no campo. 

“Meu pai foi pioneiro. Ele percebeu os impactos dos agrotóxicos nas questões de saúde e começou a fazer intervenções para entender o motivo. Foi uma luta muito árdua”, conta Márcia Xavier, filha de Zé Maria. 

Marcia Xavier é diretora do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador e Ambiente (CERESTA) de Limoeira do Norte (CE) e filha de Zé Maria do Tomé, ativista morto em 2010 por denunciar e combater os uso de agrotóxicos.
© Nilmar Lage / Greenpeace

Hoje, sou vítima três vezes dos agrotóxicos: primeiro, porque quando era criança tive problemas de pele (e foi por isso que seu pai começou a se interessar); segundo, porque meu pai foi morto por combater esses venenos; e terceiro porque minha filha tem puberdade precoce – com 1 ano e 3 meses, ela começou a desenvolver mamas por conta da contaminação de agrotóxicos”, relata Márcia.

Em 2017, um estudo da Universidade do Ceará (UFC) constatou casos de malformações congênitas e puberdades precoces na Chapada do Apodi por agrotóxicos. Também na região do baixo Jaguaribe, a taxa de mortalidade por câncer é 38% maior quando comparada ao restante do Ceará.  

Outra vítima emblemática da contaminação por agrotóxicos é Vanderlei Matos, trabalhador rural morto em 2008 pela exposição crônica a esses venenos. Por mais de três anos, Vanderlei ficou estocando, pesando e transportando agrotóxicos dentro da fazenda da multinacional norte-americana Del Monte Fresh Produce, na área rural de Limoeiro do Norte. Dez anos depois, em uma decisão inédita na justiça, a viúva de Vanderlei ganhou o processo e a empresa foi condenada pela morte por agrotóxicos

A multinacional norte-americana Del Monte foi condenada em 2018 pela morte por agrotóxicos do trabalhador rural Vanderlei Matos, que trabalhou por mais de três em uma fazenda da empresa manuseando essas substâncias tóxicas em Limoeiro do Norte (CE).
© Nilmar Lage / Greenpeace

Agronegócio X Agricultura Familiar

A Chapada do Apodi fica no Vale do Jaguaribe — mais precisamente, no Baixo Jaguaribe —, uma região que vem recebendo, desde os anos 90, recursos e investimentos do governo cearense para impulsionar o agronegócio. 

Por estar sob o Rio Jaguaribe, o maior e mais importante rio do Ceará, empresas agrícolas se instalaram no local atraídas principalmente pela captação de água em detrimento das comunidades e dos ecossistemas locais – Vale do Jaguaribe é um dos principais polos da fruticultura irrigada do Brasil e, além de frutas, também produz algodão e soja.

Apesar do avanço do agronegócio, a Chapada do Apodi e todo o Vale do Jaguaribe são referências de resistência popular, abrigando mais de 24 mil assentamentos da agricultura familiar. 

Mesmo convivendo com diversos problemas – conflitos por terra, escassez de água e uso intensivo de agrotóxicos –, as famílias agricultoras lutam por uma produção de alimentos mais justa e saudável, a exemplo do projeto “Meu Quintal em Sua Cesta”, da Comunidade que Sustenta Agricultura (CSA), que fortalece a agroecologia no Vale do Jaguaribe apoiando a produção e a comercialização de cultivos ecológicos.    

Do local ao nacional

Desde 2009, a pulverização aérea é proibida na União Europeia devido ao seu potencial de “prejudicar significativamente a saúde humana e o ambiente”. O pior é que, além dos danos socioambientais, esse método nem é eficaz para a agricultura: 70% dos agrotóxicos aplicados por avião não atingem o alvo, aponta nota técnica da Fiocruz. 

Fora que o Ceará, após a proibição, teve um aumento na produção e na comercialização de bananas, que até então eram as produções agrícolas que mais recorriam à chuva de veneno.

Agora, a meta é aplicar esse triunfo do povo cearense para o resto do Brasil. Segundo levantamento da Repórter Brasil e Agência Pública, mais 10 estados podem adotar mesma norma, pois já possuem projetos de lei (PLs) em tramitação: Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraíba, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo.

Que a lei Zé Maria seja de todo o país, quiçá de toda América Latina, aspira Reginaldo Ferreira e também todas as pessoas que lutam por uma alimentação e uma agricultura saudável.

Faça parte você também desse movimento! Participe e divulgue o Manifesto pela Agroecologia