Ituna-Itatá: uma terra indígena
da Amazônia tomada por
ganância e destruição
Na agenda antiambiental do governo federal, terras indígenas
viram recompensa a criminosos que invadem a floresta
Sobrevoo realizado na Terra Indígena Ituna-Itatá em setembro de 2019, na época de queimadas. © Fábio Nascimento / Greenpeace
Enquanto uma parcela da sociedade fica em casa para se proteger da pandemia da Covid-19, muitas outras esforçam-se para resistir à própria sorte. Entre os grupos mais vulneráveis estão as populações indígenas, em especial as que vivem em isolamento, sob histórico ataque, e que agora estão ainda mais ameaçadas perante o aumento da presença de invasores em seus territórios.
Diante do relaxamento da fiscalização do Estado sobre áreas tomadas ilegalmente por grileiros, fazendeiros, garimpeiros e madeireiros, os invasores seguem destruindo a Amazônia e condenando ao extermínio aqueles que cuidam da biodiversidade e, por consequência, da vida no planeta.
Ituna-Itatá é a ponta do iceberg de um cenário que se alastra por muitas Terras Indígenas (TIs) da Amazônia. Foi a TI mais desmatada em 2019, segundo dados do Prodes, como mostra o gráfico abaixo. Nos quatro primeiros meses de 2020, já foram destruídos mais 1.319 hectares de floresta nos territórios indígenas, um aumento de quase 60% se comparado ao mesmo período do ano passado. E Ituna-Itatá lidera essa lista com 397,4 hectares desmatados, segundo alertas de desmatamento do sistema Deter, do Inpe.
A agenda hostil do governo atual favorece o desmatamento e arrisca levar ao genocídio os povos indígenas da Amazônia brasileira em pleno século 21. Como parte da política anti-ambiental que vem sendo radicalizada nos últimos 16 meses, diversas ações vêm sendo adotadas, com destaque a duas medidas recentes: a Instrução Normativa n° 9 da FUNAI, que na prática legaliza as invasões dentro das terras indígenas não homologadas, como é o caso da Ituna-Itatá, e a Medida Provisória (MP) 910/2019, mais conhecida como MP da Grilagem, que pretende liberar milhares de hectares aos invasores.
Para se ter uma ideia do tamanho do estrago, 94% do território de Ituna está registrado em nome de proprietários particulares através do Cadastro Ambiental Rural, o CAR, um instrumento que não legaliza a posse da terra, mas que permite que pessoas se autodeclararem donas de gigantescas áreas públicas.
Outro ponto que chama a atenção é o fato de que quase um terço dos 223 CARs registrados em Ituna-Itatá corresponde a áreas com mais de 1.000 hectares, o equivalente a 1.400 campos de futebol por área declarada! “Isso mostra que os verdadeiros beneficiários dessas invasões são grandes proprietários e grileiros de terra, focados na especulação imobiliária e não famílias vulneráveis em situação de desespero. Mostra também quão confiantes os invasores estão de que o governo muito em breve conseguirá mudar a lei a favor deles. Nunca tivemos um governo tão amigo de criminosos e contra os povos e a floresta como este”, diz Adriana Charoux, da Campanha da Amazônia do Greenpeace Brasil.
Desde o ano passado, temos acompanhado e denunciado os crimes em série em Ituna-Itatá. Em setembro de 2019, sobrevoamos o território e testemunhamos a existência de uma gigantesca malha viária cortando a floresta, áreas desmatadas e queimadas, bem como currais, cercas e gado. Uma vez que desde 2011 Ituna tem o status de Terra Interditada, que exige legalmente que ela só seja acessada com a autorização da Funai (Fundação Nacional do Índio), este é um claro sinal de que os invasores resistem ao cumprimento da lei.
Se os grileiros forem vitoriosos e conseguirem evitar a demarcação do território, será aberto um perigoso precedente capaz de promover o extermínio de mais de 100 grupos que vivem em isolamento em outras terras indígenas e sob a mesma condição no Brasil.
Desmatamento chega à mesa do consumidor
Mesmo sendo completamente ilegal qualquer atividade de exploração de recursos naturais em terra indígena, como pecuária, extração de madeira e minério, Ituna-Itatá tem sido palco para fraudar transações comerciais de gado e madeira para o mercado doméstico e internacional. Algumas das propriedades registradas no CAR, inclusive, estão em nome de pessoas que comercializam gado com pecuaristas que mantém relação comercial com os maiores frigoríficos do país comprometidos com o Desmatamento Zero, como a Marfrig, Global Foods e Frigol e a JBS.
Dentre tantos proprietários que se autodeclaram donos de áreas na TI Ituna-Itatá, está o advogado Lazir Soares de Castro, que possui dois registros de CAR em Ituna, as Fazendas Mata Verde I e Mata Verde II, cada uma com mais de 1.000 hectares e ambas registradas em 2015, quatro anos depois da interdição da área.
Investigações de campo do Greenpeace em parceria com a Repórter Brasil mostram que, em 2019, a Fazenda Mata Verde I vendeu 379 animais para a Fazenda Bela Vista, que pertence a Marcelo de Castro. No entanto, a Fazenda Mata Verde I não tem área de pastagem suficiente para suportar a quantidade de gado que é declarada como vinda de lá. Imagens de satélite indicam que o desmatamento dela se restringe a 33 hectares da propriedade, uma área considerada irrisória para a atividade, sem indicação da existência de curral ou qualquer outro tipo de instalação que suporte uma fazenda capaz de fornecer tantos animais. Isso indica que os bois comercializados por Lazir não nasceram ou engordaram na fazenda indicada no documento de transferência de animais.
Vale destacar ainda que Marcelo é sócio de Lazir numa empresa de rações, de acordo com consulta ao cadastro da Receita Federal, e que as fazendas de Marcelo comercializam animais com a Marfrig Global Foods, Frigol e JBS, empresas comprometidas publicamente em excluir de suas listas de fornecedores fazendas com desmatamento, em terras indígenas e com trabalho análogo ao escravo. No caso de Marfrig e JBS, inclusive comprometidas, desde 2011, a controlar todos os seus fornecedores, incluindo os indiretos
Essa é uma prática conhecida por triangulação ou lavagem de gado. É quando o gado “livre de desmatamento” pode estar misturado com outros animais vindos de áreas devastadas. E o boi que nasceu em uma fazenda e transitou por diversas propriedades até o dia de seu abate acaba deixando um rastro de destruição, contaminando todo a cadeia de abastecimento e chegando até a mesa do consumidor do Brasil e de outros países também.
Madeira: licenciando a Ilegalidade
Outra irregularidade praticada na Ituna-Itatá é o licenciamento para o plano de manejo florestal concedido pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMAS-PA) para a extração de madeira. Em 2016, Wilson Paula da Mota, que se autodeclarou no CAR como proprietário da Fazenda Morro Alto, conseguiu o licenciamento, sem que a SEMA constatasse a sobreposição com área interditada, mesmo que a licença tenha sido expedida cinco anos após a interdição da TI. Outro indício de irregularidade no processo de licenciamento é a quantidade de Ipê declarada no inventário, mais de 5 vezes superior ao que a ciência afirma ser sua distribuição natural.
Durante o período em que a exploração madeireira supostamente ocorreu, uma análise de imagens de satélite mostra que a propriedade não teve as alterações esperadas quando se realiza o manejo florestal (abertura de estradas e pátios para o depósito da madeira). Ou seja, com os documentos que autorizam extração, transporte e comercialização da madeira em Ituna-Itatá, milhares de metros cúbicos de madeira foram extraídas de forma ilegal de outras áreas, sem autorização, foram legalizadas e vendidas ao mercado nacional e internacional.
Ao analisar apenas o Ipê, a madeira de lei com o maior valor de mercado da Amazônia, mais de 10 empresas utilizaram esses documentos fraudulentos para exportar Ipê para diversos países, dentre eles, França, Estados Unidos, Bélgica, Espanha, Holanda e China.
Ituna-Itatá é um retrato da ameaça à Amazônia
As forças em jogo em Ituna-Itatá são um microcosmo da enorme pressão sobre a vida de povos indígenas e comunidades florestais da Amazônia brasileira. Não bastasse a Covid-19 e a falta de ações para conter o avanço da epidemia nessas populações, medidas do governo somadas à conivência de empresas que se abastecem das matérias-primas originadas de áreas em disputa na Amazônia têm levado ainda mais desespero ao Brasil indígena.
Vivemos um tempo estranho, afinal, aqueles que deveriam promover e proteger os indígenas atuam exatamente na contramão dos interesses indígenas. Órgãos como o Ministério da Justiça e a FUNAI, que tem o dever de cumprir a Constituição Federal, estão colaborando decisivamente para incentivar a ameaça à floresta e a um genocídio das populações originárias.
Toda vida importa, e não podemos nos omitir e abandonar as populações indígenas à própria sorte. Proteger nossas florestas é fundamental para proteger os direitos indígenas e a nossa sobrevivência.
Atualizado pela última vez na segunda-feira, 11 de maio, às 09h15.