O colapso da infraestrutura e o descompasso entre planejamento urbano e investimento público agravam os impactos das enchentes e as injustiças sociais

Jardim Pantanal, São Paulo, fevereiro de 2025. Foto: Letycia Bond/ Agência Brasil

Há duas semanas, os moradores da cidade de São Paulo enfrentam as consequências das fortes chuvas e de uma cidade despreparada para a atual realidade climática. As maiores dificuldades recaem sobre as populações periféricas, que vivem em bairros historicamente negligenciados pelo poder público, como é o caso do Jardim Pantanal, na zona Leste da capital paulista, submerso há quase sete dias. 

Além de todas as dificuldades que se impõem pela falta de acesso a direitos fundamentais nos bairros mais vulnerabilizados, a população tem testemunhado um embate de narrativas que agravam as incertezas sobre o presente e o futuro no lugar onde construiu sua história. 

São Paulo não está preparada

Poucos dias antes dos alagamentos no Jardim Pantanal, em 24 de janeiro, véspera do aniversário de São Paulo, choveu o equivalente à metade do que estava previsto para o mês inteiro. Uma pessoa morreu, ruas e estações de metrô ficaram alagadas e carros ilhados. Na ocasião, Nunes afirmou que a cidade estava preparada e nada mais poderia ser feito para conter a força da água. 

Em resposta, diversos especialistas contestam a fala e apontam para a realidade: São Paulo não está preparada. Há, sim, muito a ser feito para reduzir os impactos e prevenir os danos causados por temporais como o do dia 24, os que aconteceram na sequência e os que ainda virão.

A cidade sofre com um sistema de drenagem insuficiente e uma grande quantidade de superfícies impermeáveis, como asfalto e concreto, que impedem a absorção da água. Obras de drenagem, infraestrutura verde e soluções baseadas na natureza, como áreas de infiltração e parques inundáveis, estão entre as soluções que podem reduzir significativamente os alagamentos.

Em entrevista ao portal do G1, Kazuo Nakano, professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), destaca que a infraestrutura de São Paulo está defasada para o atual contexto climático. 

“O que está acontecendo é que São Paulo está dando sinais de um colapso no seu sistema de drenagem, porque nas últimas décadas teve muita intervenção no espaço da cidade, muitas obras de infraestrutura […] principalmente nos sistemas de drenagem na cidade que não teve adaptação necessária a esses processos de transformação do tecido urbano, mas também a esses processos de mudanças climáticas que está entrando em uma situação de emergência climática”, afirmou Nakano à GloboNews.

Descompasso entre planejamento e aplicação de recursos

O Greenpeace Brasil também ouviu alguns especialistas, entre eles Jeferson Tavares, professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU-USP) em São Carlos (SP). Tavares publicou, em colaboração com mais dez pesquisadores, o estudo Síntese Territorial: Infraestruturas Urbanas nas Cidades Brasileiras, fruto de uma pesquisa realizada entre 2019 e 2024 em municípios de diversas regiões do Brasil.

A publicação sintetiza os principais resultados de pesquisas sobre políticas públicas  urbanas e regionais vinculadas ao planejamento das cidades brasileiras, com foco na infraestrutura e na expansão da malha urbana e como se relacionam com as mudanças climáticas.

Uma das problemáticas levantadas pelo professor é o descompasso entre os recursos destinados pelo governo federal, especialmente por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e as obras municipais no planejamento que orientam o desenvolvimento da cidade, como o Plano Diretor.

“Historicamente, os investimentos em infraestrutura no Brasil têm sido feitos de forma fragmentada, tratando habitação, saneamento e transporte, entre outros, de maneira isolada, sem uma abordagem territorial unificada. Essa setorização dificulta a criação de cidades mais funcionais e resilientes, pois ignora a interdependência entre diferentes políticas públicas. Ou seja, por um lado estamos planejando a cidade, e, por outro, estamos (governo federal e municipal estão) investindo de uma forma que não é a prioritária decidida democraticamente”, comenta Tavares.

A falta de alinhamento entre investimentos e planejamento urbano resulta em cidades desiguais, onde o deslocamento da população para novas áreas urbanizadas desorganiza o tecido social e econômico. 

“Em geral, se você tem os ricos se deslocando para o extremo dessa mancha urbanizada e para longe das áreas centrais mais bem equipadas, você certamente vai ter, por exemplo, um número muito maior de automóveis, portanto, poluição mais intensa. Além disso, áreas que antes eram determinadas para uso rural ou então tinham funções ambientais específicas vão se transformar em territórios  impermeáveis. E se a gente for olhar pro mercado informal ou ilegal, vamos ter outros problemas, como ocupação de encostas, de áreas de preservação permanente (APPs), ocasionando um impacto direto naquele recurso natural que tinha uma função ambiental de garantir um minimo de segurança para uma determinada cidade, distrito ou bairro”, complementa.

O professor ressalta ainda que esse movimento é uma consequência do processo de crescimento desordenado das cidades e de uma estrutura sócioeconômica que acentua as desigualdades. 

É fundamental reconhecer que os bairros periféricos, habitados há décadas pelas populações pobres e negras nas cidades, tiveram na autogestão e organização comunitária uma alternativa fundamental à ausência do poder público. Cabe à gestão municipal garantir soluções efetivas e assumir a responsabilidade de melhorar suas condições de vida.

Diante desse cenário, a crise das chuvas em São Paulo evidentemente não pode ser considerada uma emergência momentânea, enfatiza Luciana Travassos, arquiteta urbanista e docente da UFABC, em depoimento ao Greenpeace Brasil.

“Essa crise expõe a negligência histórica no planejamento urbano e a falta de investimentos em infraestrutura resiliente. E para enfrentar esse desafio, é essencial adotar uma abordagem que una justiça climática e planejamento territorial, garantindo que as populações mais vulneráveis não sejam sempre as mais impactadas. Isso inclui integrar a recuperação de Áreas de Preservação Permanente (APPs) aos investimentos em infraestrutura, promovendo cidades mais adaptáveis às mudanças climáticas e mais justas para seus habitantes”, complementa.

Jardim Pantanal

O Jardim Pantanal é uma das áreas mais afetadas pelas enchentes em São Paulo nos últimos dias. O bairro é historicamente habitado por famílias de baixa renda, majoritariamente negras. Segundo a Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (SIURB), grande parte da região está em área inundável. Mas, apesar disso, pouco foi investido em soluções eficazes para mitigar os impactos das chuvas.  

Um embate de narrativas também se impõe em relação ao bairro. De um lado, o prefeito Ricardo Nunes oscila em suas declarações num vai e vem de versões sobre como solucionar as enchentes, do outro, estão organizações socioambientais, especialistas e quem precisa ser prioritariamente ouvido, as populações mais impactadas, que além de terem de enfrentar uma escalada de desafios enquanto testemunham a água invadindo suas casas, têm de criar suas próprias estratégias para sobreviver ao cenário que se agrava e sair às ruas para que sua voz seja reconhecida. 

Entre as três versões bastante questionáveis apresentadas pelo prefeito sobre como solucionar o problema, está a de remoção de milhares de famílias. Nunes alegou em entrevistas que a construção de um dique para contenção das águas na área custaria mais de R$1 bilhão e que “não vale a pena” esse investimento. Só que poucos dias depois, foi divulgado o resultado dos estudos preliminares da Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (Siurb) sobre o Jardim Pantanal, realizadas em 2021, que apontam que o custo de remoção das famílias (R$ 1,9 bilhão) é superior à realização de obras de enfrentamento da enchente no bairro, calculadas entre R$ 1 bilhão e R$ 1,3 bilhão.

“É injusto e violento optar por remover as pessoas do seu território por causa das chuvas, ao invés de investir em obras de prevenção e sistemas de drenagem no local, principalmente se for do desejo delas permanecer ali. A situação das enchentes no Jardim Pantanal é histórica, assim como a negligência do poder público com as famílias que moram naquele território há mais de 40 anos. O que traz segurança para a vida das pessoas frente aos eventos extremos é implementar medidas eficientes de prevenção e adaptação climática, e não removê-las de um local para outros”, alerta o porta-voz da campanha de Justiça Climática do Greenpeace Brasil, Rodrigo Jesus.

O plano de bairro do Jardim Pantanal, elaborado pelos moradores, com apoio do Instituto Alana em parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil em São Paulo,  também aponta medidas e tecnologias existentes que podem ser utilizadas para mitigação e contenção dos alagamentos existentes, como a recuperação do rio Tietê a partir da restauração da sua mata ciliar, a implementação de infraestrutura verde como bacias de retenção, alagado construído, biovaletas, pavimento permeável, entre outras medidas, além de ampliação do recurso de prevenção em áreas consideradas suscetíveis a inundações, com recursos para obras de sistemas de drenagem, monitoramento de desastres e ações preventivas contínuas de limpeza de córregos e bueiros. 

A prefeitura tem o dever de garantir condições dignas de moradia e infraestrutura para a população.

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