Marcilene Santos, 39, mora no Centro de Manaus. Com a casa alagada pela cheia do Rio Negro, ela precisa escolher entre comer ou comprar madeira 

Marcilene Silva dos Santos, 40, e sua filha Ricarlen, 9, na casa de madeira onde moram no Igarapé do São Vicente, no centro de Manaus. Com a pandemia de Covid-19 e a enchente, seu trabalho tornou-se inviável, levando a enfrentar grandes dificuldades financeiras. Ela revela que, desde o início da enchente, tem tido dificuldade para dormir. “Um dia encontramos um jacaré de 2,5 metros dentro de casa”. © Raphael Alves / Amazônia Real

As mudanças climáticas já são uma realidade e afetam principalmente as populações em situação de vulnerabilidade. É por isso que abrimos nossos canais para trazer a voz de quem já paga um preço alto pela falta de acesso a direitos básicos para uma vida digna; e que têm suas vidas ainda mais impactadas pelo aumento de eventos extremos como cheias, secas e grandes tempestades. 

Leia o depoimento de Marcilene e acesse também outros relatos.

“Me chamo Marcilene dos Santos, tenho 39 anos e moro no Centro de Manaus. Trabalho com o que tiver, mas antes da pandemia tava vendendo limão nos pontos e terminais de ônibus da cidade. 

Outro trabalho do qual tenho muito orgulho é o de ser a palhaça Jujubinha – há dez anos, me visto de palhaça e visito hospitais e casas de crianças adoentadas. Tento levar algum conforto e alegria para famílias que estão precisando disso. Hoje não estou indo fazer esse trabalho porque não tenho dinheiro pra comprar o material que preciso, tipo maquiagem e tecidos; e nem pra andar de ônibus. Tenho meu amor e minha alegria, mas isso não é suficiente. Como palhaça Jujubinha, já ajudei muito e já fiz muitas coisas boas. Vivia de dar esperanças a quem não tinha nenhuma.

Sou viúva e moro com três filhas, de 9, 16 e 18 anos. A de 16 anos tá nesse momento internada no hospital e deve dar à luz a qualquer momento. É um menino que ela tem. Como vai ser eu dentro de casa com essa menina de resguardo e o bebê, sem estrutura nenhuma? Ela não tem quase nada, precisamos do enxoval quase todo.  

Moro há nove anos dentro de um igarapé, numa área que chamam de São Vicente. Minha casa é uma casa humilde, de madeira. Ela tá com a estrutura toda abalada. Ela já era velha, imagina como ela vai ficar quando a água descer, ela vai estar toda prejudicada. Quem me ajuda bastante são os vizinhos. Já recebi aqui algumas equipes de televisão que vieram fazer reportagem comigo.

Quando veio a pandemia, foi um choque. Não podia mais circular nos ônibus, não podia fazer visitas. A cidade tava parada. Perdi meu fornecedor de limão – ele saiu do terminal em que a gente trabalhava e nunca mais o vi. O terminal foi desativado, acabei perdendo essa frente de trabalho. Eu peguei Covid-19, bem forte, logo no começo da pandemia, e minha filha mais nova também.

Tem dois meses e meio que o prejuízo com a cheia começou. A água começou a entrar dentro de casa e veio um monte de coisa junto: a água tem um mau cheiro e os bichos começaram a aparecer. Já vimos um jacaré aqui perto e, quando fui tirar de casa uma geladeira que quebrou por causa da água, eu e dois vizinhos achamos uma cobra enorme atrás da geladeira. Desde esse dia eu não durmo direito e vivo apavorada. E se aparecer outra cobra? E se ela atacar minhas filhas ou meu neto que vai vir? A água tá por todo canto e mesmo que a gente não queira, a gente acaba se molhando e sujando os pés.

Estou numa situação muito difícil. Minha casa está completamente no fundo do rio e já perdi duas máquinas de lavar, uma geladeira e um fogão. Meus colchões estão numa situação muito ruim. Estou dormindo em cima de uma cama box que já está toda molhada e comprometida. Já perdi um celular que caiu na água.

Tive que comprar madeira e ir construindo novos assoalhos em casa, à medida que o rio ia subindo. Estou no quinto assoalho e ainda tô arrumando ele. Já pensei em mudar de casa, mas não dá. Não tenho condições de pagar aluguel. Qualquer aluguel aqui perto da minha casa é mil reais. Assim como várias outras famílias, não tive opção a não ser ficar dentro de casa

Diz que a água já vai começar a descer essa semana, espero que isso seja verdade.

Todo dia a água sobe mais um pouco. Já liguei pra Defesa Civil e pra Secretaria Municipal de Assistência Social. Eles vieram aqui em casa, me cadastraram no auxílio-enchente, mas até agora não recebi nada.   

Até a alimentação tá faltando pra gente. Meu gás tá acabando, meu botijão tá bem leve. O que me salva hoje é o Bolsa-Família, que paga R$ 130,00. Não recebi o auxílio emergencial. A gente tem comido muito ovo e salsicha. Compro um quilo de farinha e tenho que ir regrando, vamos comendo de pouquinho em pouquinho pra ela durar muito. Tem vezes que minha filha pede pão e nem sei o que dar. Um dos dias mais tristes que tivemos recentemente foi quando quis fazer um mingau de arroz pra nossa janta. Peguei o açúcar. Ele tava preto de tanta formiga que tinha nele. Não tinha mais nada de comida em casa. Nunca vou esquecer daquele mingau, das minhas filhas comendo aquela comida porque era a única coisa que a gente tinha. 

À noite eu não durmo. Fico com medo de algum bicho entrar dentro de casa, aí fico olhando as coisas, vigiando as paredes.

Apesar dessa situação, ainda procuro manter algo vivo e alegre dentro de mim. Há três semanas, fui a um bairro vizinho como Jujubinha. Já conhecia algumas famílias, sabia de algumas crianças que precisavam de visita. Fui até lá levar um sorriso, uma música, uma distração. Isso me ajuda demais e queria poder fazer isso mais vezes. 

Minha situação tá ruim, mas tem muita gente com situação precária, muita família afetada por essa cheia. Seria muito bom se as autoridades olhassem pelas pessoas que estão passando necessidade, que visitassem essas pessoas. O ideal, claro, seria tirar elas desses lugares e dar uma vida digna pras famílias que vêm sofrendo”.

O Greenpeace Brasil está realizando esta semana uma grande entrega de cestas básicas para diversas famílias atingidas pela cheia nas zonas Sul e Leste de Manaus. Mil cestas serão distribuídas, que vão totalizar 10 toneladas de alimentos e vão beneficiar cerca de 440 famílias. Marcilene está incluída nesta lista de beneficiários. 

Já existem soluções para a crise climática que podem ajudar na resolução da crise econômica e social brasileira. Precisamos apenas ligar os pontos, contar com quem já está atuando junto e promover ações que contribuam para a construção de um mundo mais justo, inclusivo e em equilíbrio com o meio ambiente. Assine a nossa petição para se juntar ao movimento de pessoas que reconhecem a urgência da crise climática, dar voz às pessoas mais afetadas por este problema e manter-se informado para nos mobilizarmos pela causa e pressionarmos as autoridades.

Sem a ajuda de pessoas como você, nosso trabalho não seria possível. O Greenpeace Brasil é uma organização independente - não aceitamos recursos de empresas, governos ou partidos políticos. Por favor, faça uma doação hoje mesmo e nos ajude a ampliar nosso trabalho de pesquisa, monitoramento e denúncia de crimes ambientais. Clique abaixo e faça a diferença!