Após dez anos, cadeia de produção de carne na Amazônia ignora acordos e, apoiada nas novas políticas, reduz “ambição” no combate ao desmatamento

Há dez anos os maiores frigoríficos do Brasil se comprometeram com o fim do desmatamento, mas quase nada foi feito.

Não importa onde você esteja: ainda hoje, nenhum supermercado no Brasil pode garantir que 100% de sua carne bovina é produzida sem crimes sociais e ambientais.

Principal motor de desmatamento da Amazônia, a cadeia produtiva da pecuária teve uma grande oportunidade de melhorar suas práticas há exatamente dez anos. Os esforços, porém, continuam pouco ambiciosos.

Em 2009, investigações feitas pelo Greenpeace e pelo Ministério Público Federal escancararam ao mundo o papel do gado na destruição da biodiversidade amazônica. Grandes redes de varejo e famosas multinacionais foram expostas mundialmente por comprarem carne e couro produzidos na região às custas da floresta. O constrangimento internacional foi determinante: o setor privado teve que se mexer.

Na época, os três maiores frigoríficos que atuam na Amazônia – JBS, Marfrig e Minerva – assinaram junto ao Ministério Público Federal um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e aderiram aos “Critérios Mínimos para operações com gado e produtos bovinos em escala industrial no bioma Amazônia” . Na prática, eles se comprometeram a desenvolver sistemas de monitoramento para excluir de suas listas de fornecedores as fazendas que continuavam desmatando, que usavam mão de obra escrava ou que tivessem invadindo áreas protegidas.

Alguns avanços foram notáveis para uma indústria que, até então, nunca havia se responsabilizado pelos crimes ambientais que ocorriam em sua cadeia produtiva.  O percentual de fazendas com desmatamento recente que abasteciam de gado os frigoríficos da JBS na região, por exemplo, caiu de 36% para 4% depois de seis anos de assinatura do TAC, revelou um estudo do instituto de pesquisas Imazon[1].

Mas uma pecuária livre de desmatamento ainda é um sonho muito distante. Os sistemas de monitoramento desenvolvidos pelos frigoríficos ainda trazem falhas graves, conforme apontam auditorias realizadas nos últimos anos[2] e operações de fiscalização do Ibama, como a Carne Fria, de 2017.

Gado em area embargada pelo Ibama no municio de Aripuana MT.

Gado em area embargada pelo Ibama no municio de Aripuana (MT).

Além disso, pelo menos metade dos frigoríficos que atuam na Amazônia ainda não assumiu qualquer compromisso de monitorar seus fornecedores. Isso significa que, todos os dias, pelo menos 18 mil cabeças de gado são abatidas na região sem qualquer controle ambiental[3]. Esta carne vai parar nos supermercados de todo o Brasil, tornando os brasileiros cúmplices forçados de uma produção manchada por crimes sociais e ambientais.

Para piorar o cenário, as empresas que assinaram os acordos continuam monitorando apenas seus fornecedores diretos – ou seja, as fazendas de onde compram o gado. Resguardados pela falta de apetite de governos locais e federal de darem mais transparência ao controle de origem de animais, os frigoríficos ainda se esquivam de controlar seus fornecedores indiretos, como exigem os compromissos firmados. O boi que nasceu em uma fazenda e transita por diversas propriedades até o dia de seu abate deixa um rastro de destruição no seu encalço que não é detectado pelo rastreio.

A inércia e os sucessivos escândalos envolvendo a cadeia da pecuária evidenciam a falta de comprometimento do setor com a floresta, com seus povos e com o fortalecimento da democracia. Por esses motivos, em 2017 o Greenpeace decidiu interromper seu envolvimento na implementação do Compromisso Público da Pecuária na Amazônia.

Com tantas lacunas e sem um controle de ponta a ponta da cadeia, a execução dos acordos nunca se concretizou plenamente, limitando muito seus efeitos positivos e abrindo brechas para o greenwashing das empresas, que se dizem líderes da produção sem desmatamento.

A realidade contradiz o discurso. Os dados de ocupação da terra na Amazônia mostram que, mesmo depois de dez anos de acordo, quase 65% das áreas desmatadas viraram pasto para gado. A atividade responde por cerca de 50% de todas as emissões brasileiras de gases do efeito estufa.

A bomba-relógio se agrava a cada dia com o crescente apetite de destruição das políticas pró-crime na região e com a fragilização dos meios de comando e controle promovidas pelo governo Bolsonaro.  Basta olhar para a explosão de desmatamento e queimadas que a Amazônia vem enfrentando nos últimos meses.

O fogo que transformou floresta em cinzas acabou chamuscando também a imagem do Brasil no mercado internacional, que tem sinalizado que não irá tolerar a compra de produtos associados a esses problemas. Isso pode afetar tremendamente a economia do país e a vida dos brasileiros, que já anda difícil.

Há cinco anos, mais de 150 empresas no mundo se reuniram com governos, povos indígenas e organizações da sociedade civil para assinar a Declaração de Nova York sobre Florestas (DNYF), prometendo eliminar o desmatamento de commodities como soja, gado e óleo de palma até 2020[4]. Em setembro de 2019, a avaliação oficial da DNYF concluiu que alcançar esse objetivo agora é ‘provavelmente impossível’ porque ‘os esforços até o momento foram inadequados para alcançar mudanças sistêmicas'[5].

A pergunta que fica é: até quando a sociedade vai conseguir administrar a irresponsabilidade de decisões corporativas e governamentais diante do desafio que estamos enfrentando? Os princípios dos acordos do gado ainda são válidos, embora seja preciso reconhecer que não são mais suficientes frente à necessidade de adaptação à emergência climática que já está nos afetando.

Se os compromissos tivessem sido realmente levados a sério, o setor inteiro já estaria operando sob critérios mínimos e controlando TODOS os fornecedores ao longo da cadeia. O governo estaria apoiando com assistência técnica e concessão de crédito aos que desejam produzir com menos impacto. Os sistemas públicos e obrigatórios de controle estariam incluindo toda a produção e não somente aquela que vai para a Europa. Os consumidores estariam mais educados e dispostos a valorizar nossas riquezas naturais, diversificando sua alimentação e consumindo menos produtos de origem animal. Se tudo isso tivesse se concretizado, teríamos algum motivo para celebrar esses 10 anos de acordos da pecuária.

Infelizmente, não é o caso.

Em um planeta que está prestes a entrar em colapso, a escolha por um modelo predatório não se sustenta por muito mais tempo e já está empurrando todos nós – e o próprio setor – para a beira do abismo.

O tempo acabou. As chances de uma transição gradativa foram dadas, mas não abraçadas. Agora, a mudança terá de ser ainda mais radical e profunda.

 

Notas:

[1] Imazon – “Como melhorar a eficácia dos acordos contra o desmatamento associado à pecuária na Amazônia?”: https://bit.ly/2pnKDrt

[2] O Eco – TAC da Carne no Pará: irregularidades passam em branco: https://bit.ly/2nYSQlI

[3] O Eco – Origem desconhecida: https://bit.ly/2o0i42X

[4] Site da Declaração de Nova York sobre Florestas

[5] Avaliação de Parceiros da DNYF (2019) p14

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