Um relato de sobrevoo pelas Terras Indígenas Munduruku e Kayapó, devastadas pelo garimpo ilegal na última década

Greenpeace Brasil sobrevoo nas Terras Indígenas Munduruku e Kayapó.
Greenpeace Brasil sobrevoou nas Terras Indígenas Munduruku e Kayapó.
© Marcos Amend / Greenpeace

Ariene Susuí é campaigner do Greenpeace. Vinda do povo Wapichana, de Roraima, Ariene nasceu na comunidade de Truarú da Cabeceira, e há alguns anos milita nos movimentos sociais pelos direitos dos povos indígenas. Formada em jornalismo, ela participou, nas últimas semanas, de um sobrevoo de monitoramento sobre algumas Terras Indígenas no sudoeste do Pará. Pedimos que ela compartilhasse conosco suas impressões. Eis o material que ela elaborou:  

“Era 7 da manhã de uma quinta-feira quando começamos a nos organizar para o sobrevoo sobre as terras indígenas Munduruku e Kayapó.

Eu estava muito ansiosa – foi o meu primeiro sobrevoo em territórios com garimpo ilegal. Quando eu era criança na comunidade indígena Truaru, em Roraima, ouvia falar sobre o garimpo. Mas me parecia um assunto muito distante: ali não tínhamos problemas com a atividade criminosa. Mas nós recebíamos o alerta: se houvesse uma lei que abrisse os territórios indígenas para a garimpagem, todos nós seríamos afetados. Anos se passaram e então ouvi novamente, dentro do movimento indígena, que vários parentes de outras regiões estavam sendo duramente atingidos por essa prática ilegal. 

Em várias mobilizações que participei a problemática do garimpo era colocada. Várias lideranças falaram o quanto o garimpo avançava em seus territórios, trazendo destruição e problemas sociais. Mas eu mesma ainda não tinha uma ideia clara do tamanho dos prejuízos. 

Saímos de Manaus (AM) e seguimos até o território Munduruku. Por volta das 11 da manhã,  começamos a sobrevoar os primeiros pontos abertos de garimpo ilegal. Ao olhar o estrago lá embaixo, só pude refletir sobre as vidas que estavam sendo afetadas naquele espaço. Naquele momento, comecei a lembrar da fala dos meus líderes: “o homem não indígena, eles vêm e destroem tudo em nome do dinheiro”. Meu pai mesmo dizia que o ouro só traz destruição por onde passa. 

Comecei a lembrar de uma outra conversa que tive no Acampamento Terra livre (ATL) em 2022, com Dário Kopenawa – uma das maiores lideranças indígenas do Brasil. Ele dizia que seu povo, os Yanomami, não sabiam mais o que fazer. Eles já tinham  ido em todas as instâncias do poder público. No entanto, o seu território continuava sendo invadido e a busca pelo ouro só aumentava. O que ficava para trás, dizia ele, era só devastação, doenças e contaminação dos rios. Para nós, povos indígenas, o território é sagrado: têm seres visíveis e invisíveis vivendo naquele espaço, por meio de uma conexão ancestral. 

No primeiro momento, ao sobrevoar o território Munduruku, não tive muitas reações. Mas no dia seguinte, quando sobrevoamos a Terra Indígena Kayapó, meus olhos se encheram de lágrimas. A visão foi devastadora. O que eu via parecia uma cidade feita de lama e destroços. Naquele momento eu me perguntava: “será que ainda é possível fazer algo?”

À medida que avançávamos, a esperança ia indo embora. Porém, me recordei das lideranças, que sempre disseram para os da minha geração: “Morrer se for preciso, mas desistir jamais! Território é nossa mãe! Ninguém vende, machuca ou destrói a nossa mãe!” Mas lembrei também que, sozinhos, nós não seremos capazes de acabar com o garimpo ilegal, tamanha a proporção que este problema tomou dentro dos nossos territórios. 

Fiquei em choque por horas. Ali sim pude entender a dor dos meus parentes: como lutar contra todo um sistema bilionário? A luta é muito desigual. Nos locais onde ele acontece, o garimpo ilegal está afetando a vida de diversas pessoas e trazendo muitos prejuízos para a sociobiodiversidade. A sociedade precisa entender o que acontece hoje dentro dos territórios indígenas. As joias brilhantes e as pedras preciosas que as pessoas usam saem de um lamaçal que engole e consome as almas de milhares de indígenas. 

O ouro é banhado de sangue indígena. O Brasil nasceu do genocídio dos nossos ancestrais; e o mercado do ouro também se sustenta pela mesma lógica. A cada segundo que passa, mais vidas estão sendo perdidas para o garimpo ilegal: quantas gramas de ouro valem uma vida indígena?

Ao sobrevoar os dois territórios, minha sensação foi de profunda tristeza. Pelo que já vi e ouvi sobre o assunto, não há como defender o garimpo em nenhuma circunstância. Não há como promovermos desenvolvimento baseado na prática de um crime tão perverso. Podemos até pensar que ele talvez funcione por um tempo, mas ele não funciona. Não há como trocar a vida dos povos indígenas pelo ouro. A floresta em pé é mais valiosa do que ela derrubada. Precisamos pensar em outros modelos econômicos, principalmente modelos que cuidem e conservem a vida.”    

Quer ajuda na luta contra o garimpo ilegal? Colabore com o nosso abaixo-assinado que pede a retirada dos garimpeiros de dentro dos territórios originários.

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