O conhecimento da medicina indígena combina medicamentos naturais com a sabedoria sobre as relações com o meio ambiente no tratamento de doenças

A cura pela medicina indígena depende de um profundo entendimento sobre a relação do homem com a natureza (Foto: Lunaé Parracho / Greenpeace).

A cultura dos povos indígenas é rica em tradições e conhecimento. Isso se estende também ao cuidado com a saúde, de modo que as diversas práticas e os saberes compõem a chamada medicina indígena.

Essa sabedoria é transmitida entre as gerações, incluindo a relação com a floresta e com o meio ambiente. Entretanto, há desafios que precisam ser considerados como, por exemplo, os ataques predatórios à região da Amazônia.

Ao longo deste artigo, você terá a chance de aprender mais sobre a medicina indígena e como é possível agir para protegê-la. Confira!

O que deu origem ao Bahserikowi — Centro de Medicina Indígena da Amazônia?

Em 2009, após ser picada por uma cobra jararaca, uma criança da etnia Tukano foi transferida para um hospital de Manaus (AM) para receber tratamento. Os médicos que a atenderam recomendaram a amputação da perna como única alternativa. 

Entretanto,seus parentes não concordaram com o diagnóstico e recorreram à justiça para impedir o procedimento e conquistar o direito de utilizar suas técnicas tradicionais como terapia complementar.

Com o tratamento ancestral, a perna da menina foi salva e esse episódio deu origem à criação do Bahserikowi – Centro de Medicina Indígena da Amazônia, localizado em Manaus, capital do Amazonas. De lá para cá, cerca de 2.900 pessoas já foram atendidas no local, entre indígenas e muitos não-indígenas, como conta João Paulo Barreto Tukano, filósofo, mestre em antropologia e coordenador do centro.

Como funcionam os atendimentos no Centro de Medicina Indígena da Amazônia?

Os atendimentos são realizados por diferentes kumuã, sobretudo de povos da região do Alto Rio Negro, como Tukano, Tuyuka e Desano.

“Funcionamos como um consultório médico de tratamento de doenças. As pessoas vão lá com seus problemas e se encontram com o Kumu, que é mais conhecido como pajé, e ele faz o diagnóstico das doenças e faz o tratamento”, explica João Paulo. 

Preconceito com a medicina indígena

“A maior dificuldade que a sociedade em geral tem é entender o conhecimento indígena, pois muitos acreditam que é uma cura na base da religião. A pessoa diz que é um curandeiro, que é magia, essas palavrinhas tão inocentes, que, na verdade, são carregadas de preconceitos. Porque elas têm na mente essas palavras, dizem que tem que acreditar, ter fé, mas não é isso, é só um modelo de medicina diferente da ocidental”, conta.

Para João Paulo, parte desta confusão se dá pelo fato de a medicina indígena considerar a relação com o meio ambiente como parte da causa das doenças e também da cura.

“Muitas doenças são causadas pela má relação que temos com o ambiente, com o rio, com a floresta. Porque o princípio que nós temos é que todos os ambientes, seja no universo aquático, como no da floresta, no da terra, são habitados por seres, os Waimahsã. Eles são os donos dos lugares e cuidam das coisas ao seu redor, eles cuidam dos recursos naturais. Quando a gente invade esse espaço, eles atacam as pessoas, então isso aparece como doença do corpo, dor de cabeça, náusea, dores no corpo, no cotovelo, no joelho”, explica. 

Segundo o antropólogo, neste contexto, não é possível tratar doenças apenas com remédios. A cura depende de uma combinação de tratamentos, que inclui medicamentos à base de plantas, como a carapanaúba e a Sara Tudo, o uso de bahsese ou benzimentos, além de mudanças de costumes, que incluem às vezes abstinência sexual e dietas específicas, com a exclusão de carne, por exemplo.

Como funciona a formação dos pajés?

Os tratamentos, que podem levar dias ou até meses, foram desenvolvidos ao longo dos anos a partir de muita observação e do conhecimento tradicional, passado adiante pelos kumuã mais experientes, em um longo processo de formação que pode levar até cinco anos.

“Temos um sistema tradicional de formação de novos pajés ou kumuã que, por muito tempo, fomos obrigados a negar quando tivemos contato com a sociedade ocidental. Mas assim como um médico, para se tornar um Kumu passa-se por um processo de formação muito rígido, que envolve abstinência, isolamento social, dieta e acompanhamento direto de outros pajés especialistas e formadores, para aprender a utilização de certas substâncias para acessar o domínio do conhecimento”, explica João Paulo. 

Um dos maiores custos do centro é com o transporte e manutenção dos kumuã na capital. Mas qualquer um, mesmo de longe, pode contribuir para a manutenção do centro. Na imagem ao lado, você encontra os dados e as instruções de como contribuir.

Técnicas e conhecimento registrados 

Parte do conhecimento ancestral dos pajés e xamãs existe tradicionalmente apenas em sua versão oral, transmitido de geração em geração. Mas alguns povos indígenas passaram a registrar esses conhecimentos em seu próprio idioma e, às vezes, também em português. 

É o caso do projeto “Manual dos remédios tradicionais Yanomami”, uma pesquisa intercultural empreendida pela Hutukara Associação Yanomami em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), lançada em 2015. 

O trabalho foi transformado em uma exposição interativa e está disponível na plataforma do Google Arts and Culture. 

Lá, o visitante pode conhecer, por fotos, vídeos, desenhos, depoimentos em áudio e textos, como o conhecimento tradicional sobre a medicina da floresta, patrimônio milenar do povo Yanomami e que sobreviveu à morte de muitos de seus portadores por conta de epidemias de sarampo e malária trazidas por invasores do território indígena. 

É possível também conhecer algumas das plantas utilizadas pelos Yanomami e ouvir sua pronúncia. Navegue pela exposição abaixo.

Já o povo Matsé, que vive na fronteira do Brasil e Peru, decidiu registrar seu conhecimento em uma grande enciclopédia, com 500 páginas, toda escrita em seu próprio idioma. A enciclopédia, compilada por cinco xamãs, com assistência do grupo conservacionista Acaté, detalha as plantas usadas na medicina Matsés e como elas são aplicadas no tratamento de diversas doenças. 

A escolha por produzir o documento em sua língua nativa visa evitar que este conhecimento seja roubado, como já aconteceu. O intuito é que a enciclopédia seja usada exclusivamente para preservar o conhecimento para os novos e futuros xamãs.

Medicina indígena: saiba mais

Aprofundar seu conhecimento na medicina dos indígenas permite entender qual é a importância dessa abordagem para a saúde indígena e não indígena. A seguir, saiba mais sobre o tema!

O que é medicina indígena?

A medicina indígena pode ser definida como o conjunto de saberes e práticas de povos indígenas ao longo das décadas e séculos. Esse conhecimento é repassado entre gerações e está ligado à cultura e às crenças de cada povo.

Também é importante notar que a medicina indígena não é única. Povos indígenas diferentes têm conhecimentos e práticas variadas, criando uma base de conhecimento diferente em cada região.

Como surgiu a medicina indígena?

Devido às suas características, as origens da medicina indígena se relacionam às raízes de cada povo. Isso ocorre porque o sistema de práticas de saúde depende da relação que os indígenas estabelecem entre si e com o meio ambiente.

A criação dessa medicina também está atrelada aos rituais, às características de cada local e ao conhecimento ancestral. Logo, o surgimento da medicina indígena não ocorreu de modo imediato, tendo se consolidado ao longo de milhares de anos e dezenas de gerações.

Como funciona o sistema de saúde indígena?

O documento “Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas”, elaborado pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) é uma grande referência sobre o tema. Entre outros pontos, ele ajuda a explicar como funciona o sistema de saúde indígena. Nesse caso, a abordagem holística tem destaque.

Para os indígenas, de modo geral, a saúde está relacionada à harmonia entre pessoas e o ambiente no qual elas estão inseridas. Isso significa que os povos indígenas costumam atuar focando na integração entre corpo, mente, meio ambiente e demais elementos que os rodeiam.

Ainda, é comum haver a suplementação entre medicina indígena e medicina baseada em evidências científicas. É o que acontece quando a pessoa enferma passa pelo Kumu, que faz uma avaliação inicial e indica o tratamento. A partir disso, pode haver a atuação concomitante entre as bases de conhecimento.

Qual é a contribuição indígena para a medicina?

Outro ponto para considerar é que a medicina indígena não favorece apenas a saúde dos povos indígenas. Os conhecimentos que envolvem os elementos da natureza, muitas vezes, podem ser aplicados em conjunto com tratamentos diversos.

Uma pesquisa que contou com o suporte da Função de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) mostrou a eficácia dos remédios naturais indígenas. De acordo com o levantamento, os tratamentos com plantas ajudaram no alívio da dor de 64,5% dos entrevistados — contra 22,2% no caso da medicina tradicional.

Os demais conhecimentos desenvolvidos ao longo do tempo ainda podem servir de terapias complementares em uma abordagem científica, por exemplo. Inclusive, alguns desses ativos podem originar novos tratamentos.

Quais são os rituais de cura dos indígenas?

Considerando o conhecimento registrado e transmitido entre as gerações, há muitos rituais utilizados em busca da cura. Eles estão relacionados a hábitos culturais e suas crenças, sendo muito típicos de cada povo.

Alguns povos indígenas utilizam como prática de cura o rapé. Ele consiste na aplicação ou sopro de cinzas que entram nas vias nasais, mas que não devem ser ingeridas. Segundo os conhecimentos ancestrais, ele pode ajudar a se recuperar de um dia cansativo, por exemplo.

Já a sananga é um preparo aplicado como um colírio. Sua função é ajudar a curar problemas oculares, principalmente ao provocar ardor e lágrimas.

Outras técnicas incluem benzimentos, chás, massagens e aplicações tópicas de diversas substâncias.

No caso dos indígenas da etnia Yanomami, por exemplo, esfregar certas folhas no corpo ou fazer banhos com elas pode ajudar a aliviar sintomas, como febre e dores. Entoar cânticos também é comum e faz parte de diversos rituais.

Qual é a importância dos curandeiros e curandeiras?

No contexto do sistema de saúde indígena, os curandeiros e as curandeiras têm papéis fundamentais. Eles muitas vezes oferecem o primeiro contato com os enfermos, fazendo o diagnóstico inicial e recomendando os tratamentos com base na medicina indígena.

Eles também são essenciais para o registro e para a transmissão do saber para as próximas gerações. Isso é crucial para fortalecer os laços comunitários e favorecer os processos referentes tanto ao cuidado individual quanto o realizado de maneira coletiva.

Como essa sabedoria é transmitida de geração em geração?

Manter viva a tradição cultural e os conhecimentos medicinais depende da transmissão do saber entre as gerações. A oralidade tem um papel fundamental, garantindo que os mais velhos transmitam seus conhecimentos para os mais jovens.

Também pesam questões como a participação em cerimônias e rituais e a observação. Ainda, há outros métodos que também têm sido cada vez mais usados, como o o Bahserikowi, que tem como uma de suas missões realizar um sistema tradicional de formação de novos kumuãs. Já o povo Matsé optou pela criação de uma enciclopédia no próprio idioma, detalhando plantas e rituais.

Quais plantas medicinais usadas na medicina indígena?

A conexão com a natureza faz com que a medicina indígena seja altamente baseada no uso de plantas e ervas. Cada povo utiliza a própria cultura e tradição, além dos recursos disponíveis na área em que atuam.

A “Cartilha de Plantas Medicinais (Rau Xarabu)”, por exemplo, mostra quais espécies são mais usadas na Terra Indígena Kaxinawá Nova Olinda, em Feijó (AC). Algumas opções são:

  • Anu Nisũ: dor de cabeça e no corpo;
  • Baka Hatu: dor de estômago;
  • Mani Hushĩ Rau ou Hasĩ Testu: falta de apetite;
  • Xinu Kaxka: dor de cabeça e febre;
  • Xixi Itsa: dor de cabeça e gripe;

Diversos povos indígenas na Amazônia também consomem ayahuasca, como é o caso dos Yawanawás. Outras plantas são igualmente usadas, como rapé, mambe, toé e mais opções.

Somente na região amazônica estima-se que sejam empregadas 25 mil espécies de plantas para a cura de diversas condições. Logo, há muitas possibilidades relacionadas à medicina indígena.

Quais são os desafios enfrentados pela medicina indígena?

Apesar de sua grande relevância, a medicina indígena enfrenta diversos desafios. Um deles envolve as ameaças à preservação cultural, principalmente junto às novas gerações e aos fatores externos que podem provocar uma erosão do conhecimento.

É preciso considerar as dificuldades relacionadas à perpetuação do conhecimento, como o registro além da oralidade.

Também há desafios relacionados aos preconceitos e estigmas quanto às práticas de medicina indígena. Embora 80% da população mundial recorra à fitoterapia, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a prática indígena muitas vezes é vista como se fosse apenas dependente da crença.

A quebra de preconceitos é possível a partir do conhecimento de modo respeitoso. Para tanto, é essencial buscar fontes autênticas e entender os aspectos culturais em rituais e cerimônias. Também é válido consumir exposições e materiais produzidos pelos próprios povos indígenas, de modo a conhecer melhor a visão de cada grupo.

Outro desafio está relacionado ao desmatamento na Amazônia. Essa atividade degrada territórios indígenas, torna os povos mais suscetíveis a outras doenças e ainda diminui a disponibilidade de recursos como plantas medicinais. Por isso, é essencial combater esse avanço.

A iniciativa Salve a Amazônia!, do Greenpeace, ajuda a proteger não apenas a medicina indígena como toda a região rica em tradições, cultura e biodiversidade.

Saiba como ajudar a Amazônia com Greenpeace

A medicina indígena existe há milhares de anos e traz uma nova visão para o cuidado com a saúde. Baseada na harmonia entre corpo, natureza e comunidade, ela tem muito a ensinar e fornecer para a sociedade.

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