Ouvir o que sente, pensa e faz quem mora nas periferias para acessar direitos básicos que lhes são historicamente negados deveria ser regra para criação de políticas públicas
Em um momento em que no balaio da realidade brasileira se armazena, num curto período de tempo, uma série de crises que acentuam as duras pegadas da desigualdade, a crise climática também marca o tempo com seus graves impactos.
O brasileiro vem sentindo na pele desde o começo de 2021 as consequências diversas do desequilíbrio do clima mundial: cheias intensas no norte, frio extremo no Centro-Sul, e seca histórica nos reservatórios de hidrelétricas que abastecem boa parte do país – provocando o aumento da conta de luz e dos alimentos. E é na vida de mulheres como Jaqueline, Inês e dona Eva, que terão suas vozes ecoadas nesta reportagem, mas que representam muitas outras, que a conta de todas as crises cai primeiro e muito mais cara.
Quando questionada sobre o que ficou mais difícil com a chegada da pandemia, Jaqueline Bispo da Silva, de 33 anos, nos dá um chacoalhão de realidade e lembra que sobreviver já é desafiador há tempos para muitos brasileiros que vivem ou trabalham nas periferias, favelas e assentamentos precários, e que as crises mais recentes só acentuaram um modo de funcionar de uma sociedade historicamente cruel e desigual.
“Eu sou uma mãe da favela. A questão da pandemia no mundo, ela só agravou problemas que sempre existiram. Hoje, quem tinha um emprego não tem mais, e para quem não tinha, está mais difícil ainda, assim como o acesso à alimentação e outros direitos básicos. A gente (ela e o marido) trabalha como autônomo, vai fazendo do jeito que dá, às vezes faz uma faxina aqui, vai virar uma massa ali, carrega uns blocos, a gente é diverso”, diz. Precisa ser.
Números não se descolam da realidade
Hoje, 19 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar, e o agravamento da desigualdade fez com que muitos passassem a ter uma renda que nem de perto é suficiente para garantir uma refeição que não só gostariam, como precisariam ter para garantir a saúde no enfrentamento da pandemia. Números que não se descolam da realidade.
Inês Pereira dos Santos vive em uma casa com mais sete pessoas, no município de Ferraz de Vasconcelos, Grande São Paulo. Com a pandemia, todos perderam o emprego. O marido faz bicos para contribuir com os malabarismos necessários para colocar comida na mesa e ainda pagar todas as contas que chegam cada dia mais altas. “Antes eu pagava R$50,00 (na conta de luz), mas agora foi pra cento e poucos reais”, relata. À falta de renda se acumula a incerteza do alimento no prato, da água que acaba todos os dias na torneira e o problema das dívidas.
Em julho deste ano, a Aneel, Agência Nacional de Energia Elétrica, anunciou um novo aumento na tarifa de energia que passou de R$6,24 para R$9,49 a cada 100 kWh (quilowatts-hora). Um reajuste de 52%. Ainda segundo a Agência, o acionamento além do previsto de usinas termelétricas para garantir o fornecimento de energia em 2021 vai custar R$ 13 bilhões à população.
Para Inês, a conta de luz é uma das que mais pesam. E quais são os sacrifícios que vocês estão precisando fazer?, pergunto. “Banho. O banho tem que ser rápido. Se for demorar 3 minutos, 5 minutos, não dá, então é poucos segundos. Eu também tiro a televisão da tomada na hora de dormir. É difícil eu ficar com aparelho ligado dia e noite, não fico mais, só geladeira, porque às vezes tem alguma coisa, agora mesmo ela tá quase desligada porque não tem nada de mistura, quase nada lá dentro”, ela responde.
Os impactos da crise hídrica
A alteração do regimes de chuvas não aumentou apenas a conta de luz, mas também o preço dos alimentos. A seca provocou prejuízos na produção de itens como arroz, feijão, leite, carne, entre outros. “Aumentou tudo, tudo, tudo, moça. Um pacote de arroz, a gente comprava pelo que? 14 reais, até 16, agora tá quase 30 reais um pacote de arroz de 5 quilos que aqui só dura três dias né, porque é muita gente. Mistura? Antes era difícil faltar. Agora sempre falta”, conta Inês.
Em quase todas as casas que visitamos, a água é recurso escasso todos os dias, geralmente é interrompida à noite e só volta na manhã seguinte. Para algumas dessas famílias, a solução é armazenar a água em garrafas pet. Outras nem têm espaço para isso, contam com os vizinhos quando a escassez se prolonga.
Para Eva de Jesus Sousa Santos, a dona Eva, a conta de água é mais uma que desequilibra a balança da sobrevivência. De um lado, os boletos a pagar, do outro, a fome e a alta do preço dos alimentos. Apesar de faltar água todos os dias, ela recebe em casa a cobrança pelo serviço. “Antes eu pagava 20 reais, 10 reais (na conta de água). Agora, no mês passado, acumulou o atraso e veio (no valor) de 70 e alguma coisinha. Então já fica mais difícil, né?”, conta.
Antes da pandemia, dona Eva vendia vasilhas de plástico numa feira do bairro, o que lhe garantia “uma rendinha”, como ela mesma diz, mas como tem a saúde frágil não pôde ir mais. “(Naquela época) Tava dando pra sobreviver”. Hoje, sua única renda é o auxílio emergencial de R$150,00, que usa para garantir o que pode para ela e o neto, de 12 anos.
“Às vezes tem muita gente que se pergunta”, conta, “como é que a Dona Eva sobrevive se ela não tem nenhum ganho, não tem ninguém que ajuda? Eu tenho sim! Eu tenho eles que me ajudam, né, e eu tenho Deus também que me ajuda muito”. O “eles” a quem ela se refere são Cibele Machado e Geraldo Mendes, mais conhecido como Servo GDS, ambos representantes da Central Única das Favelas, a CUFA Ferraz de Vasconcelos (SP).
Sociedade civil em ação
A CUFA é parte de um dos importantes movimentos liderados pela sociedade civil nos lugares onde a ação solidária tem sido fundamental na assistência às populações em situação de vulnerabilidade – uma parcela da população que há tempos sofre o abandono do poder público no cumprimento do seu dever de garantir uma vida digna a todos. “O que vale aqui dentro da nossa comunidade para que não falte o alimento das nossas crianças são os projetos sociais”, diz Jaqueline Bispo da Silva.
Antes da pandemia, GDS trabalhava exclusivamente com produção cultural organizando shows musicais. Nesses eventos, ele também costumava arrecadar alimentos para distribuir para ONGs locais que os encaminhavam para moradores nas favelas. Mas, desde março de 2020, ele tem dedicado a maior parte do tempo para atender cerca de 800 famílias, aproximadamente 3500 pessoas em Ferraz de Vasconcelos, Poá, Guarulhos e outras regiões da zona leste de São Paulo.
“São muitas as necessidades que essas famílias estão passando hoje. Algumas não conseguem comprar um gás (de cozinha), outras não têm um chuveiro para tomar banho, têm tomado banho de caneca, outras não estão conseguindo pagar a conta de água, a conta de luz ou comer. Então a gente chega nessas famílias para ajudar com o básico de sobrevivência, que é um alimento, uma estrutura para que possa sobrar um dinheiro pra ela pagar essas contas”, relata.
Desde o ano passado, o Greenpeace tem unido forças a outras organizações, entre elas a CUFA, para levar ajuda no enfrentamento da pandemia, contribuindo com alimento para quem precisa e apoiando a agricultura familiar, que tem atuado fortemente na aliança entre campo e cidade no combate à fome nas periferias urbanas e no fortalecimento da saúde de muitos brasileiros.
Diante de tantos desafios, em uma outra região da cidade, a agroecologia, que nasce principalmente pelas mãos da agricultura familiar, surge como medida de resiliência fazendo a ponte entre quem tem fome e comida saudável.
Saindo da zona leste e aterrissando na zona sul de São Paulo, quem nos conduz é Thiago Vinicius, da Agência Solano Trindade, parceiro de longa data do Greenpeace Brasil e uma voz forte quando o objetivo é dar eco sobre o que sente e pensa quem vive nas periferias e à luta pela derrubada dos muros da desigualdade.
Mais recentemente, em meio à pandemia, Thiago e sua mãe, Tia Nice (como gosta de ser chamada), começaram o cultivo agroecológico num sítio em Juquitiba, região metropolitana de São Paulo. Eles veem a agroecologia como uma importante aliada na luta contra a fome, além de ser capaz de conectar a diversidade das periferias com a diversidade da natureza.
Agroecologia como medida de resiliência
Como o próprio Thiago descreve, há muito em comum entre a vida nas periferias e a forma de produção. “As agroflorestas têm todos os tipos de espécies vivendo juntas, inclusive as pragas, que são naturais e fazem parte desse ecossistema. Então eu vejo que a agrofloresta tem tudo a ver com a periferia. A periferia é diversidade, a gente inclusive também pode falar que a periferia é uma agrofloresta, uma agrofloresta de gente, de gente trabalhadora, de gente batalhadora, e foi por isso que a gente escolheu esse modo de produção, porque tem tudo a ver com a nossa quebrada, com a nossa comunidade onde a gente nasceu, onde a gente viveu e onde a gente conquistou muitas coisas”.
Além de representar as periferias, esse modo de produzir torna a região muito mais forte para enfrentar momentos como a seca que estamos vivendo no país. Apesar da crise climática influenciar todo um desequilíbrio que tem provocado uma série de eventos extremos, é importante olharmos para o que acontece em menor escala nos territórios. A água que abastece o terreno e a horta de Thiago e de Tia Nice, por exemplo, vem de uma nascente muito próxima dali e que segue intacta graças aos esforços de toda a vizinhança.
“Essa mina d ‘água permanece viva porque todo mundo aqui cuida dela. Todos os vizinhos se abastecem dela. A gente faz um mutirão pra cuidar dela com muito carinho”, diz Tia Nice. E Thiago completa: “Ao mesmo tempo que a gente está preservando a mata, é como se a gente estivesse plantando água”.
“Um dos princípios da agroecologia é a diversidade e o outro é o respeito ao ambiente local. Quando você usa uma diversidade de espécies no plantio, você tem chances muito maiores de que aquele sistema sobreviva. Por exemplo, se você tem uma seca intensa em um monocultivo, que é quando se cultiva uma única espécie, e essa seca acontece bem no período de floração, a produção vai ser zero ou vai ser muito baixa. Por outro lado, se eu tenho dez, vinte espécies num mesmo local, aquela seca vai chegar e pode ser que afete da mesma forma àquela mesma espécie lá do monocultivo, só que eu tenho muitas outras que poderão sofrer impactos menores ou que serão afetadas de diferentes formas. A diversidade com certeza garante uma maior resiliência”, explica Flávio Bertin, professor de Ecologia da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq), Universidade de São Paulo.
Desde março de 2020, a Agência Solano Trindade já entregou mais de 20 mil cestas básicas e 35 mil marmitas, e até o final do ano pretende entregar o total de 50 mil marmitas. “Em um momento como este, a alimentação é tudo. E a gente acredita que quando a gente coloca na mesa de uma família um alimento orgânico é menos uma pessoa na fila da UBS”, afirma Thiago.
Já existem soluções para a crise climática que podem contribuir com a resolução da crise econômica e social brasileira. Precisamos apenas ligar os pontos, contar com quem já está atuando e promover ações que contribuam para a construção de um mundo mais justo, inclusivo e em equilíbrio com os recursos naturais do planeta. Assine a nossa petição para se juntar ao movimento de pessoas que reconhecem a urgência da crise climática e manter-se informade sobre mobilizações e iniciativas para pressionar as autoridades.
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Discussão
Que matéria incrível, triste realidade do nosso País. Parabéns Greenpeace pela empatia.
Belo trabalho feito por esses voluntários, em especial GDS de Ferraz