Durante a expedição do Asas da Emergência pelo Rio Solimões, muitos depoimentos nos emocionaram: mais uma vez, diante da Covid-19, os povos originários são exemplo de resiliência

Ao navegarmos os 1.607 km do Rio Solimões, além de entregarmos quase 22 toneladas de ajuda emergencial para povos indígenas de oito cidades das regiões do Médio e Alto Solimões – Tefé, Uarini, Fonte Boa, Jutaí, Santo Antônio do Içá, São Paulo de Olivença, Benjamim Constant e Tabatinga -, ouvimos diversos testemunhos de lideranças que têm enfrentado ali no “beiradão” desse rio a tragédia de uma epidemia que abalou o mundo todo. Cerca de 80% dos indígenas contaminados pela Covid-19 no Brasil vivem na Amazônia.

De dia ou de noite, as conversas e os depoimentos das lideranças em cada parada que fazíamos ao longo do trajeto evidenciavam, especialmente, dois fatos. O primeiro é o explícito abandono a que os indígenas estão relegados e a omissão do Estado em cumprir o seu dever, determinado pela Constituição Federal, de proteger a vida e os territórios tradicionais dos indígenas. O descuido e abandono que presenciamos nos portos que atracamos ao longo da viagem foi um dos explícitos indícios desta situação. Ainda mais se considerarmos que, como ressaltamos antes, os rios são as estradas na Amazônia, fazendo com que os portos sejam estruturas estratégicas e necessárias na vida de quem por ali mora.

“Para nós, é muito claro o que o governo quer. Desde 2018, ele nunca escondeu… É uma agenda institucional o genocídio dos povos indígenas do Brasil. Para o governo, hoje, a Amazônia é inabitável. E ela não é. Nós sempre estivemos aqui e sempre estaremos aqui, defendendo o nosso território”, declara Nara Baré, coordenadora-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

O segundo fato é especialmente inspirador diante de um cenário tão adverso: a força e determinação que os indígenas têm em “insistir em resistir” e fazer justamente o que o Estado não faz, garantir a continuidade de suas existências e de seus singulares modos de vida.

Nesse sentido, o antropólogo Maurício Kokama, emocionado, considerou: “A gente perde, sim, muitos dos nossos idosos, mas não só idosos. A gente perde memórias, histórias, culturas com a morte deles. Mas também estamos aqui pra resistir por eles, pra poder nunca sumir deste mundo”. Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o povo Kokama foi o mais contaminado pela Covid em todo o Brasil, com o registro de 58 óbitos. 

O pai de Maurício, seu Eládio, é uma liderança histórica do povo Kokama e fez um relato  bastante triste da Covid na sua aldeia, a Sapotal, localizada em Tabatinga. “Foi o momento mais difícil que o povo Kokama de Tabatinga passou. Tivemos uns 15 dias de agonia, de sofrimento. Não tinha nem lágrima mais. Eu perdi meu irmão, meu primo, meu tio, minha tia… Todo dia tinha um ou dois mortos aqui. O SUS não estava preparado. Pior aqui, na última cidade onde termina o Brasil, que pouco importam com nossas vidas. Foi avisado sobre isso, mas os governantes não se preocuparam com a gente”, nos contou ele. 

Uma resistência ancestral

Mesmo diante deste sofrimento, o povo ainda encontrou forças para enfrentar esta realidade. Através da solidariedade e do uso da medicina tradicional. “Quando começamos a tratar de nós mesmos, com remédios caseiros, ninguém mais foi pro hospital. Nós íamos nas rádios pra falar como evitar a doença. A gente se uniu muito porque foi muito difícil ver… A gente tava vivendo, agora no presente, o que aconteceu com nossos antepassados no passado. Mas isso nos deixou mais fortalecidos porque a dor de um é a dor de todos, pra nós!”, concluiu seu Eládio Kokama.

No final da expedição do Asas da Emergência, Carol Marçal, da campanha Amazônia do Greenpeace Brasil, enalteceu esta característica dos povos indígenas. “Mais uma vez, nesses mais de 500 anos desde que o Brasil foi invadido, os indígenas se recusam a morrer. Mesmo diante da grave omissão do Estado, da violação histórica de seus direitos e das invasões de seus territórios, os povos indígenas articularam uma rede de parceiros e solidariedade para enfrentar esta trágica situação”, avaliou. 

Ela lembra que desde maio, através do Asas da Emergência, diversas organizações se dispuseram a apoiar os povos neste enfrentamento, tecendo esta ampla rede de solidariedade, que inclui, além do Greenpeace, a Coiab, o Expedicionários da Saúde (EDS), a Operação Amazônia Nativa (Opan) e o Instituto Socioambiental, dentre outras organizações.  

Cabe ressaltar que esses materiais não irão atender somente os indígenas que vivem próximos ao Rio Solimões. Muitos povos que vivem nas calhas de outros rios, como o Juruá, o Japurá, o Jutaí e o Biá, dentre outros, serão também beneficiados pelas entregas realizadas nesta expedição.

Contando os materiais entregues durante esta expedição, o Asas da Emergência já realizou mais de 60 voos e outras duas expedições de barco, totalizando mais de 60 toneladas de equipamentos hospitalares, materiais de higiene e proteção entregues para povos indígenas que vivem nas regiões de difícil acesso de mais de 30 cidades da Amazônia

Um mar de verde… e o mundo que a gente quer

Os sete dias e noites que ficamos a bordo do Samara Lopes para realizar as entregas dos materiais de ajuda emergencial nos presentearam com a oportunidade de estarmos mais próximos desta dialética realidade amazônica, de tanta força e, ao mesmo tempo, delicadeza. 

Nas águas do rio, vimos “um mundo” sendo transportado de um lado para outro, em pequenas e enormes embarcações: de botijões de gás a outras mercadorias necessárias, de carros a caminhões, de cachorros a bois. Sem falar, claro, nas famílias ribeirinhas, subindo e descendo o rio a todo momento. 

Nas suas margens vimos centenas de comunidades indígenas, ribeirinhas, pescadoras, suas plantações, seus animais. Adultos, crianças, idosos, muitas e diversas coletividades florescem ali. Mas, sobretudo, tivemos a presença quase constante da floresta soberana. Com seus mil tons de verde, a Amazônia parecia ecoar, majestosamente, o que os povos indígenas vêm alertando desde sempre: a sua destruição impactará na vida de cada um de nós. 

Com a missão cumprida, voltamos para as nossas casas com a obrigação de repensar ainda mais as nossas vidas, os nossos valores. O que cada um de nós pode fazer para contribuir com a transformação da realidade, para  construirmos uma sociedade verdadeiramente “verde”, justa e solidária? Como podemos mudar o modo como consumimos? Como podemos garantir que as empresas e os Estados respeitem a natureza, a floresta e os seus os povos? O que você, que está lendo esse texto e compartilha dessas reflexões, está disposto/a a fazer? 


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