Saiba mais sobre essa tese e entenda como ela põe em risco os povos originários

A tese do Marco Temporal tem sido usada para dificultar a demarcação de Terras Indígenas no Brasil
© Tuane Fernandes/ Greenpeace

Atualizado em 29/02/24

Os direitos indígenas são hoje alvo do que pode ser considerado o maior conjunto de ataques de sua história. Desde 1988, as forças comprometidas com o atraso e fragilização da democracia brasileira nunca deixaram de trabalhar pela diminuição desses direitos— o que inclui formular teses jurídicas que buscam relativizá-los  ou suprimi-los. 

Sob o governo Bolsonaro e sua política anti-indígena, esses ataques foram reavivados e deram origem à tese do Marco Temporal, que tem como objetivo final inviabilizar a demarcação das mais de 800 terras indígenas não oficialmente reconhecidas. Além disso, a tese visa também levantar dúvidas sobre todas as demais terras indígenas que têm sido legalmente homologadas pelo Estado brasileiro ao longo das últimas décadas.

O que é o Marco Temporal?

O Marco Temporal é uma tese que propõe que os povos indígenas somente tenham direito às terras que estavam ocupadas por eles na data de promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Como sempre, o objetivo é restringir sistematicamente o direito dos povos indígenas às suas terras, especialmente em regiões onde ocorreram processos de expulsão ou remoção forçada devido à expansão da fronteira agropecuária. O Marco Temporal beneficia, principalmente, o agronegócio e outros setores que visam explorar os territórios tradicionais.

Diversos juristas, especialistas e estudiosos do Direito, no entanto, afirmam que essa ideia é inconstitucional. Em seu artigo 231, a Constituição Federal estabelece que os direitos indígenas são “direitos originários”, ou seja, são anteriores à própria formação do Estado brasileiro. Portanto, não é pertinente discutir a imposição de uma data ou período temporal específico para sua validação.

O que é uma terra indígena?

Uma terra indígena, conforme definido pela Constituição Federal de 1988, é um território de ocupação tradicional destinado aos povos indígenas. Considerados bens da União, esses territórios conferem às populações originárias o reconhecimento da posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos ali existentes. 

As terras indígenas são importantes ferramentas de conservação ambiental e fundamentais para a reprodução cultural dos povos indígenas, pois funcionam como barreiras para impedir o desmatamento já que, ao reproduzirem seu modo de vida, os indígenas naturalmente cuidam e conservam essas áreas. 

Demarcação de terras indígenas

A demarcação e regularização das terras indígenas são conduzidas pelo Poder Executivo, por meio da Fundação Nacional do Índio (Funai), conforme estabelecido pelo Decreto 1775/1996 do Ministério da Justiça.

Para que uma terra indígena seja regularizada (ou seja, demarcada) pelo Poder Público, são analisados alguns critérios referentes aos vínculos do povo indígenas com aquela terra, com base nos seguintes critérios:

  • Histórico de ocupação da terra;
  • Atividades produtivas; 
  • Preservação de recursos ambientais;
  • Filiação cultural e linguística;
  • Demografia e distribuição espacial;
  • Relações socioeconômicas e culturais com outros grupos;
  • Reprodução física e tradições culturais.

Em essência, as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas têm o propósito de garantir a posse permanente e o uso exclusivo desses recursos naturais pelos povos originários, respeitando e preservando sua cultura e modo de vida. 

Infelizmente, grande parte das terras indígenas no Brasil sofre com graves violações de direitos humanos, impulsionadas por atividades criminosas como o garimpo ilegal, o desmatamento e a exploração ilegal de madeira, por exemplo. Além disso, estes territórios são frequentemente afetados pela poluição de rios por agrotóxicos, massacres, genocídios, contaminação por doenças, violências sexuais, aliciamento para trabalho escravo, expulsão de seus territórios, entre muitas violações.

Por que o Marco Temporal é inconstitucional?

A proposta do Marco Temporal é inconstitucional por estabelecer que os indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estavam sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

Esse projeto fere o artigo 231 da Constituição Federal, que garante o direito originário sobre as terras aos povos indígenas: 

“Art. 231. São reconhecidos aos índios (sic) sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”

Em outras palavras, os direitos dos povos indígenas estão assegurados pela Constituição.  Isso levanta outro aspecto crucial de inconstitucionalidade: qualquer mudança nesses direitos só poderia ser discutida por meiode uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), e não por meio de um projeto de lei.

Qual a importância de impedir o Marco Temporal?

Os povos indígenas do Brasil possuem um histórico de graves violações de direitos humanos, como serem retirados de seus territórios, terem suas casas incendiadas, passarem por epidemias mortais e serem constantemente perseguidos.

Impedir o Marco Temporal é mais do que garantir o direito das populações originárias à sua terra, cultura e modo de vida: é evitar um genocídio indígena! Além do retrocesso nos direitos indígenas, a aprovação do Marco Temporal pode acarretar uma série de outros impactos, como o aumento da violência e dos conflitos fundiários; prejuízos econômicos e impactos ambientais. 

Para alertar sobre os problemas em caso de aprovação, o Instituto Socioambiental (ISA) , criou mapas interativos que mostram casos trágicos de remoção e contatos forçados com povos indígenas.

Conheça também outros 6 problemas da tese do Marco Temporal, nesse levantamento feito pelo Greenpeace.

Como e quando surgiu o Marco Temporal?

Na Câmara dos Deputados, surgiu a proposta de instituir o Marco Temporal por meio do Projeto de Lei 490, no ano de 2007, também conhecido como “PL do Marco Temporal”. Esse projeto de lei busca transferir a responsabilidade de demarcar terras indígenas do Poder Executivo para o Legislativo. Trata-se de mais uma tentativa de dificultar as demarcações de terras indígenas, agravando o quadro de violações dos direitos dos povos originários. O projeto já foi aprovado pelos deputados e está aguardando votação no Senado Federal.

Mas não para por aí: a tese está em debate no Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365. Esse recurso envolve uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, sobreviventes de um processo brutal de colonização no sul do Brasil que quase os exterminou em sua totalidade. O foco dessa disputa é a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ.

Sendo assim, o Marco Temporal é um elemento central nesse julgamento, pois determinará a partir de quando os Xokleng poderiam reivindicar seu território. Em 2019, o STF concedeu “repercussão geral” a este caso, o que significa que a decisão tomada terá implicações em todas as instâncias judiciais relacionadas à demarcação de demais terras indígenas. Portanto, este julgamento é crucial na história dos povos originários.

Quais são os argumentos contra o Marco Temporal?

Além de representar um retrocesso aos direitos dos povos originários e de ser uma tese inconstitucional, é necessário saber como o Marco Temporal afeta os indígenas.

Entre os impactos negativos que essa tese poderá trazer, destacam-se:

  • Aumento da grilagem;
  • Alta no desmatamento;
  • Contato forçado com povos isolados;
  • Remoções forçadas para colonização e obras de infraestrutura;
  • Permanência definitiva de invasores nessas terras;
  • Exploração das Terras Indígenas pelo agronegócio, inclusive com transgênicos;
  • Anulação de reservas indígenas.

Confira abaixo mais detalhes sobre os argumentos contra o Marco Temporal. Acompanhe!

O julgamento da tese do Marco Temporal será retomado em junho de 2022 no plenário do Supremo Tribunal Federal

Por que os povos indígenas são contra o Marco Temporal?

A possível aprovação do Marco Temporal resultará em inúmeros impactos negativos para as populações indígenas, que vão desde violações de direitos e violência, até a destruição do meio ambiente e prejuízos socioeconômicos.

Aumento da violência e dos conflitos fundiários

Nos últimos 10 anos, mais de 12 mil conflitos por terra ou água ocorreram na Amazônia, impactando comunidades locais que lutam pelo direito às suas terras. Caso o Marco Temporal seja aprovado, a tendência é que a violência no campo se intensifique, legitimando invasões e apropriações ilegais de terras.

Retrocesso nos direitos indígenas

Embora a Constituição assegure atualmente o direito indígena aos seus territórios de origem, essas áreas têm sido alvo de invasões por parte de garimpeiros, grileiros e madeireiros ilegais. Por isso, ao invés de concentrarmos as discussões no Marco Temporal, que tornará mais difícil a demarcação de terras indígenas, deveríamos direcionar nossos esforços para garantir a efetiva aplicação do direito indígena já previsto em lei.

Prejuízos econômicos

Cada vez mais, países importadores de produtos agrícolas expressam preocupação com a relação entre os produtos que adquirem e os danos ambientais associados a eles. Além disso, é importante destacar que o setor agrícola não depende das terras indígenas para sua produção. Portanto, associar esses territórios à exploração econômica das terras terá consequências significativas para a economia nacional.

Prejuízos ambientais

O avanço indiscriminado do agronegócio e a presença de grileiros, madeireiros e garimpeiros em terras indígenas traz enormes prejuízos para o meio ambiente. Tais práticas têm contribuído para um aumento alarmante do desmatamento, resultando em desequilíbrios nos padrões de chuvas e elevação das temperaturas, afetando até mesmo áreas urbanas distantes das terras indígenas.

Banalização da violência

As organizações indígenas afirmam ainda que essa interpretação desconsidera — ou ignora propositalmente — todas as agressões e violências sofridas pelos povos indígenas ao longo desses 522 anos

Massacres, genocídios, contaminação por doenças, violências sexuais, aliciamento para trabalho escravo, expulsão de territórios e remoções forçadas: tudo isso contribuiu para que os povos indígenas se mudassem, deslocassem suas aldeias ou simplesmente não estivessem mais em seus territórios tradicionais. 

Além de banalizar a violência histórica contra os povos indígenas, a tese do Marco Temporal chancela o avanço da “economia da destruição”, que há séculos consome as florestas brasileiras. Esse modelo econômico também inviabiliza que os povos indígenas exerçam seu direito constitucional de viverem conforme seus costumes e tradições, forçando a integração com povos isolados ou em isolamento voluntário, que optaram por viver longe da civilização ocidental. 

Atualmente, no Brasil, existem vestígios de 115 povos isolados ou em isolamento voluntário. Cerca de 114 deles estão na Amazônia.

Quem se beneficia com o Marco Temporal?

  • Grandes empresários do agronegócio: a expansão do agronegócio no país beneficia somente os grandes empresários por trás da produção. Os trabalhadores rurais e as comunidades locais continuam vivendo à margem da sociedade, sendo contratados por empresas que violam os direitos humanos e sem perspectiva de crescimento econômico;
  • A bancada ruralista: com amplo financiamento e influência do agronegócio, a bancada ruralista segue pressionando por desmontes ambientais, visando garantir apoio e financiamento provenientes de grandes empresários que priorizam  o lucro a curto prazo.
  • O julgamento no STF estava suspenso há dois anos, e foi retomado em 7 de junho de 2023. Após a Corte dar um voto contrário ao Marco Temporal, o julgamento foi suspenso novamente. Agora, os ministros têm um prazo de até 90 dias para retomá-lo (a contar da suspensão).

Quando o Marco Temporal será julgado?

O julgamento no STF ficou suspenso por dois anos e foi retomado em 7 de junho de 2023. Depois de meses de apreensão, protestos e reivindicações, em 21 de setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, por 9 votos a 2.

Em menos de uma semana, no dia 27 de setembro do mesmo ano, o plenário do Senado aprovou o texto principal do ‘PL do Marco Temporal’ 2.903/2023. Por 43 votos a 21, o Projeto de Lei entrou em tramitação e voltou a ameaçar os direitos dos povos indígenas. 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva analisou o Projeto de Lei 2.903/2023 e realizou alguns vetos. Em dezembro de 2023, parlamentares da Câmara e do Senado revisaram esses vetos e, dos 47 vetos listados pelo presidente, 41 foram rejeitados.  Atualmente, o Projeto de Lei está em processo de promulgação.

Logo após a conclusão da votação no Congresso, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) anunciaram sua intenção de apresentar ações judiciais contra o texto final da lei no Supremo Tribunal Federal (STF). A referência para a avaliação dessas possíveis ações será o julgamento concluído em setembro.

Discussão sobre direitos indígenas

De acordo com o coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinamam Tuxá, a aceitação da tese do Marco Temporal poderá “estrangular de vez” a política indigenista do Brasil. “Se essa tese for acolhida, ela vai acabar com a demarcação das terras indígenas. Ela vai causar o aumento do desmatamento, o aumento do conflito socioambiental e a criminalização das lideranças indígenas. Porque nós não vamos parar de lutar. O que está em jogo são nossas terras, nosso futuro, nossa diversidade e nossas crenças”, declarou a liderança. 

Para o porta-voz do Greenpeace Brasil, Danicley de Aguiar, o debate sobre o Marco Temporal é na realidade uma discussão sobre os direitos de todos os brasileiros: “Os direitos indígenas são direitos e garantias fundamentais e, por isso, são cláusulas pétreas da nossa Constituição. Não podem ser relativizados e nem flexibilizados”.

Aguiar chamou a atenção para o precedente perigoso que a relativização dos direitos indígenas pode produzir sobre os direitos e garantias fundamentais de todos os brasileiros. “É preciso estarmos atentos a esse julgamento, pois hoje são os direitos indígenas, amanhã serão os direitos de todos os brasileiros. Afinal, é com a relativização e supressão de direitos que as democracias começam a morrer.”, afirmou.

Free Land Camp 2022 in Brazil. © Tuane Fernandes / Greenpeace
O movimento indígena promete manter a mobilização para que a tese do Marco Temporal seja rejeitada pela sociedade brasileira
© Tuane Fernandes / Greenpeace

Como o Greenpeace vem atuando contra o Marco Temporal?

Para somar forças na luta contra o ataque aos povos indígenas, o Greenpeace Brasil lançou o abaixo-assinado “Marco Temporal, Não”. 

Foram coletadas e entregues ao Supremo Tribunal Federal mais de 320 mil assinaturas de pessoas que também são contra a aprovação desta tese inconstitucional. Ao término do julgamento, o abaixo-assinado alcançou mais de 500 mil assinaturas. Embora o objetivo inicial tenha sido alcançado, a luta pela defesa dos direitos indígenas persiste. Agora, nosso objetivo é utilizar a força dessas mais de meio milhão de pessoas para barrar o avanço do PL do Marco Temporal 2903/2023.
Além disso, nos últimos anos, o Greenpeace Brasil engajou e apoiou outras causas da luta indígena:

  • Forneceu assistência de oxigênio a comunidades indígenas impactadas pela covid-19;
  • Apresentou queixas formais sobre o aumento de atividades de garimpo e desmatamento em terras tradicionais;
  • Deu suporte a importantes manifestações indígenas, incluindo o acampamento Luta pela Vida e o Acampamento Terra Livre (ATL).

Você também pode ajudar no combate ao Marco Temporal

Desde 2013, o Greenpeace Brasil está ativamente envolvido na organização e estruturação do Acampamento Terra Livre (ATL), contribuindo para a concepção de movimentos e manifestações de rua e apoiando o movimento indígena. Além disso, participou da cobertura colaborativa do evento, produzindo conteúdos em forma de textos, vídeos e fotos que fortalecem a luta dos povos indígenas em nosso país.

Você pode se juntar a essa causa se mantendo informado, se engajando ativamente e colaborando com as ações do Greenpeace.

Conheça as nossas frentes de trabalho e participe dos abaixo-assinados. Participe do abaixo-assinado e ajude a proteger a Amazônia e os povos indígenas.

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